A importância da temperatura no armazenamento do leite.

As temperaturas de armazenamento do leite nas várias etapas da cadeia produtiva (obtenção até expedição do produto final) sempre foram motivo de preocupação para quem trabalha no setor, uma vez que sabemos que a manutenção do leite em determinadas temperaturas é fundamental para sua qualidade microbiológica.

Antes da elaboração do Programa Nacional de Melhoria da Qualidade do Leite e da publicação da Instrução Normativa 51/2002, pelo MAPA, o resfriamento do leite na propriedade e seu transporte sob baixas temperaturas não era uma obrigatoriedade e, por isso, problemas como a acidificação do leite eram frequentes. Segundo FONSECA (2000), o resfriamento e a granelização do leite fazem parte de uma estratégia de otimização de logística, redução de custos e melhoria da qualidade da matéria-prima, fatores esses fundamentais para manutenção da competitividade das indústrias de laticínios.

O RIISPOA (Decreto nº 9.013, de 29 de Março de 2017) trouxe o seguinte texto sobre temperatura de armazenamento de leite:

Art. 240. § 2º O leite cru mantido na propriedade rural deve ser conservado sob temperatura e período definidos em norma complementar.

Art. 258. Na conservação do leite devem ser atendidos os seguintes limites máximos de conservação e temperatura:

I – conservação e expedição no posto de refrigeração: 4º C (quatro graus Celsius);

II – conservação na usina de beneficiamento ou fábrica de laticínios antes da pasteurização: 4˚C (quatro graus Celsius);

III – refrigeração após a pasteurização: 4º C (quatro graus Celsius);

IV – estocagem em câmara frigorífica do leite pasteurizado: 4º C (quatro graus Celsius);

V – entrega ao consumo do leite pasteurizado: 7º C (sete graus Celsius); e

VI – estocagem e entrega ao consumo do leite submetido ao processo de ultra-alta temperatura – UAT ou UHT e esterilizado: temperatura ambiente.

 

A norma complementar a que se refere o RIISPOA é a Instrução Normativa 62/2003, que traz em seu Anexo VI – Regulamento Técnico da Coleta de Leite Cru Refrigerado e seu transporte a granel:

  • Temperatura do leite na coleta na propriedade:
  1. a)     Para tanque de refrigeração por expansão direta – refrigeração do leite até temperatura igual ou inferior a 4ºC, no tempo máximo de 3 horas após o término da ordenha, independentemente de sua capacidade;
  2. b)    Para tanque de refrigeração por imersão – refrigeração do leite até temperatura igual ou inferior a 7ºC, no tempo máximo de 3 horas após o término da ordenha, independentemente de sua capacidade;
  • Temperatura do leite para coleta e, posto de resfriamento: a eventual passagem do leite Cru Refrigerado na propriedade rural por um posto de resfriamento implica sua refrigeração em equipamento a placas até temperatura não superior a 4°C, admitindo-se sua permanência nesse tipo de estabelecimento pelo período máximo de 6 horas.

 

Novamente vamos nos deparar com uma proposta de alteração em legislação, referente à temperatura do leite. O Ministério da Agricultura (MAPA) deve colocar em consulta pública, o texto de duas Instruções Normativas (INs) que pretendem trazer uma nova regra para a produção de leite no Brasil. Os textos substituem a IN 62 (antiga IN 51), que traz parâmetros importantes de qualidade do produto, como limites para a Contagem de Células Somáticas (CCS) e Contagem de Bactérias Totais (CBT). Uma das mudanças a ser implementada é a alteração na temperatura de recepção do leite na plataforma, que passará de 10°C para 7°C, ou seja, aumentando o rigor.

Quando este assunto entra em discussão, muitas pessoas questionam qual a diferença entre manter o leite a 4°C, 7°C ou 10°C e a resposta é muito simples, que pode até soar banal, pois resumimos sempre dizendo que  “o leite é uma matéria-prima muito perecível, rica em nutrientes que facilitam o desenvolvimento de microrganismos patogênicos naturalmente presentes e a manutenção de temperaturas baixas ajuda na redução do desenvolvimento microbiológico”. Isso tudo é verdade e este é sim o principal motivo, afinal a preocupação fundamental é a produção de alimentos seguros, alimentos que não representem riscos à saúde dos consumidores. Mas quando falamos de microbiologia, nada é tão simples assim. E sim: existe muita diferença entre manter o leite em temperaturas de 4°C, 7°C ou 10°C, principalmente quando relacionamos estas temperaturas ao tempo de estocagem, pois este é um binômio que deve sempre ser levado em consideração.

Algumas alterações devido ao desenvolvimento microbiológico (principalmente micro-organismos deteriorantes, ou seja, não necessariamente patogênicos), podem facilmente ser verificadas no leite, e é por isso que alguns controles são realizados durante o armazenamento de leite nas indústrias, como por exemplo o pH e a acidez. Por outro lado, os microrganismos patogênicos podem ser silenciosos e crescer sem causar alterações na matéria-prima e, por isso, é tão importante conhecer um pouco sobre tais microrganismos e entender as possíveis maneiras de barrar seu crescimento. Confiar apenas na pasteurização como forma de eliminar todos os perigos biológicos, pode não ser o suficiente.

 

Gráfico: Influência da temperatura sobre o desenvolvimento de bactérias no leite cru

Fonte: Tetra Pak, 1995.

 

Este é um gráfico, apresentado em estudos da Tetra Pak, que demonstra a diferença no crescimento microbiológico de acordo com a temperatura e o tempo de armazenamento do leite. É possível obsevarmos que no leite mantido em temperatura máxima de 4°C o desenvolvimento da flora microbiana fica praticamente estático por até 28 horas de armazenamento, e este é um dos motivos para que esta temperatura seja orientada como temperatura ideal de manutenção do leite.

Sobre a discussão em torno das temperaturas de estocagem, transporte e recebimento de leite, os valores estão entre 4°C e 10°C, por isso, nossa preocupação limita-se aos microrganismos psicrotróficos, que possuem a capacidade de se multiplicar em temperaturas mais baixas (em torno de 7°C). Estes microrganismos representam o grupo de bactérias que mais contribui para a deterioração do leite e dos produtos lácteos, pois se multiplicam no leite cru, produzindo enzimas, e ainda pode recontaminar o leite após a pasteurização. Apesar de seu crescimento ser lento, as enzimas proteolíticas e lipolíticas que produzem, resistem aos tratamentos térmicos aplicados ao leite (pasteurização e UHT). Os principais efeitos da ação das enzimas produzidas por psicrotróficos em lácteos são:

  • Alterações sensoriais em derivados
  • Queda no rendimento na fabricação de queijos
  • Desenvolvimento de sabor amargo em queijos
  • Aumento da viscosidade e consistência em produtos UHT

 

Assim como os microrganismos mesófilos, as principais fontes de contaminação por microrganismos psicrotróficos são:

  • Saúde da glândula mamária
  • Microbiota exterior do úbere
  • Contaminação cruzada em equipamentos de ordenha e processamento
  • Qualidade microbiológica da água

 

O tempo em que o leite cru é mantido sob refrigeração após sua ordenha, antes de ser processado, pode causar o aumento no número dos microrganismos psicrotróficos.

 

Segundo BRANDELLI (2008), os microrganismos psicrotróficos representam cerca de 10% da microbiota inicial do leite, em condições sanitárias adequadas. MARTINS (2010) descreve que os psicrotróficos podem representar de 70 a 75% de toda a microbiota do leite, se este for obtido em condições inadequadas de higiene. BRANDELLI recomenda que no processo de conservação do leite pelo frio, até a segunda hora após a ordenha, a temperatura do leite deve atingir 4°C.

Segundo SOUZA, os gêneros não patogênicos mais comumente presentes em lácteos são Pseudomonas, Aeromonas, Flavobacterium, Lactobacillus. Já os gêneros patogênicos mais encontrados são Listeria monocytogenes, Yersinia enterocolitica e Bacillus cereus. Algumas fontes mencionam ainda Staphylococcus aureus, microrganismo produtor de toxinas termoestáveis que causam intoxicações alimentares.

Alguns estudos apontam, especialmente, a presença de bactérias psicrotróficas formadoras de esporos e de micobactérias no leite cru, tais como, Bacillus e Clostridium. A pasteurização elimina a maioria desses microrganismos, porém não é capaz de eliminar toxinas produzidas por eles e por isso a importância de se controlar sua carga. Microrganismos de linhagens termodúricas, como Streptococcus e Lactobacillus, e esporos de dos gêneros Bacillus e Clostridium, não serão eliminados na pasteurização.

 

Então, vamos avaliar as principais informações em relação às exigências requeridas por estes microrganismos que podem se desenvolver no leite:

  • Pseudomonas: são bastonetes gram negativos, considerados o mais importante grupo de bactérias responsáveis pela deterioração de alimentos frescos refrigerados, pois muitas espécies são psicrotróficas. São tipicamente bactérias presentes no solo e na água, e por isso, amplamente distribuídas entre os alimentos frescos. A temperatura ótima da maioria das espécies é 28°C, sendo que algumas crescem a 45°C e várias a 4°C. Não toleram condições ácidas, sendo que nenhuma espécie cresce em pH menor ou igual a 4,5.
  • Aeromonas: são bastonetes gram negativos, tipicamente aquáticos, que fermentam vários tipos de carboidratos e são halotolerantes (sobrevivem em águas com concentração salina de até 6%). Sobrevivem em ambientes com pH entre 5,0 e 10,0. Algumas espécies de  Aeromonassão  psicrotróficas. Já outras são mesófilas, sendo importantes patógenos oportunistas humanos.
  • Flavobacterium: são bastonetes gram negativos, alguns mesófilos, enquanto outros são psicrotróficos.
  • Lactobacillus: microrganismos gram positivos não esporogênicos, sendo a morfologia da maioria das espécies bastonetes de diversos tamanhos, podendo ocorrer também cocobacilos. A temperatura ótima de crescimento é 30-40°C, sendo algumas espécies psicrotróficas. O pH ótimo para desenvolvimento é 5,5 a 6,2.
  • Listeria monocytogenes: amplamente distribuída na natureza e no ambiente de produção de alimentos, essa espécie de microrganismo é composta por bastonetes gram positivos, não esporogênicos, com crescimento ótimo na faixa de pH entre 6,0 e 9,0. Apresentam temperatura ótima de crescimento entre 30-37°C, mas são psicrotróficas, portanto também se desenvolvem em temperaturas entre 4-10°C.
  • Yersinia enterocolitica: gênero da família Enterobacteriacea, bastonetes ou cocobacilos gram negativos, que apresentam desenvolvimento ótimo em temperaturas em torno de 28-29°C, e são psicrotróficas, logo, também crescem em temperaturas entre 4-10°C. Podem crescer em faixas de pH que variam de 4,0 a 10,0, sendo o ótimo, 7,6.
  • Bacillus cereus: bastonetes com parede celular gram positiva, esporogênicos, são patogênicos para humanos e outros animais, podendo provocar intoxicações alimentares e infecções oportunistas. Crescem em temperaturas que variam de 10 a 48°C, com ótimo entre 18-35°C, são psicrotróficos, capazes de crescer entre 4-6°C. O pH ótimo de desenvolvimento desta espécie é entre 6,0 e 7,0.
  • Staphylococcus aureus: cocos gram positivos, que podem se desenvolver entre 7 e 47,8°C, em pH que variam de 4,5 a 9,3 (ótimo 7,0 – 7,5). Essa espécie não sobrevive a tratamentos térmicos, porém suas toxinas, ao contrário, são altamente resistentes, suportando até mesmo temperaturas de esterilização de alimentos, sendo que essas toxinas são altamente patogênicas quando presentes em alimentos. Este é um microrganismos comumente presente no leite cru e a manutenção da temperatura baixa é importante para controlar o seu desenvolvimento, pois, sabemos que, para que as toxinas sejam originadas é necessário uma alta contagem de Staphylococcus aureus. Segundo ALVES (2010), a dose de enterotoxina infectante poderá ser atingida quando aureus alcançar quantidades maiores que 105 UFC/g do alimento contaminado. Apesar de potente, a quantidade de enterotoxina de S. aureus necessária para induzir sintomas em humanos é relativamente grande, sendo estipulado pelo menos 1 mg de enterotoxina por grama do alimento contaminado.
  • Bacillus cereus: espécie patogênica para humanos e animais, provocam intoxicações alimentares e infecções oportunistas. São bastonetes gram positivos, capazes de formar esporos, com temperatura ótima de crescimento por volta de 37°C, apesar de ser psicrotrófico e ter capacidade de se desenvolver a 6°C. A faixa de pH ideal de crescimento está entre 6,0 e 7,0.
  • Clostridium perfringens: bastonetes gram positivos, capazes de formar esporos, microrganismos desta espécie apresentam crescimento ótimo na faixa de 37-45°C, sendo que algumas cepas são capazes de crescer por volta de 6°C. Crescem em faixa de pH entre 5,5 e 8,0.

Alguns outros microrganismos são mencionados em artigos como sendo psicrotróficos, tais como Mycobacterium, Acinetobacter, Chromobacterium, Micrococcus e Streptococcus.

É de conhecimento que após a ordenha, o leite é susceptível de ser contaminado por vários microrganismos e em diferentes estágios. O grau de contaminação e a composição da população bacteriana dependem da limpeza do ambiente, da vaca e das superfícies com as quais o leite entra em contato, como por exemplo, a máquina de ordenha, balde, tanque, entre outros. Também é de conhecimento que os microrganismos são versáteis e precisamos conhecê-los, sabendo quais são suas condições de desenvolvimento, sendo a temperatura sempre um dos fatores mais impactantes. É por isso que a conservação do leite e a rápida refrigeração (imediatamente após a ordenha) abaixo de 4°C é tão importante, pois é quando o desenvolvimento das bactérias no leite fica mais lento, melhorando a sua conservação e segurança.

 

FONTES:

https://www.milkpoint.com.br/noticias-e-mercado/panorama-mercado/granelizacao-do-leite-no-brasil-8069n.aspx, acesso em 07/04/2018

http://www.agencia.cnptia.embrapa.br/Agencia8/AG01/arvore/AG01_182_21720039246.html

https://www.milkpoint.com.br/colunas/marco-veiga-dos-santos/ocorrencia-de-bacterias-psicrotroficas-em-leite-cru-refrigerado-63875n.aspx, acesso em 07/04/2018

http://www.ufrgs.br/actavet/37-2/art825.pdf, acesso em 07/04/2018

http://cienciadoleite.com.br/noticia/126/algumas-consideracoes-sobre-bacterias-psicrotroficas–parte-ii, acesso em 07/04/2018

http://dairyprocessinghandbook.com/chapter/microbiology, acesso em 16/04/2018

 

Autoras: Ana Carolina Guimarães Castanheira e Keli Cristina de Lima Neves (consultoras BRQuality)

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