Existem aqueles que seguem tendências e os que criam. Enquanto se debate qual será o “novo normal” pós-pandemia da Covid-19, há pessoas imaginando e criando a transição para um outro tipo de sociedade, que se preocupa não só com o lucro, mas também com os impactos sociais e ambientais. Afinal, estamos num momento de virada, de questionar padrões de consumo e qual o efeito deles individual e coletivamente. Essas pessoas são agentes de mudança com a perspectiva “pensar globalmente e agir localmente” e podem atuar tanto em empresas e no terceiro setor, quanto no ambiente acadêmico e em movimentos sociais. Elas personificam o que conhecemos como Liderança Sustentável.
“É o potencial de tomar decisões sempre de olho naquele tripé da sustentabilidade. É treinar e unir os colaboradores para um propósito, com a alma que combina o espírito coletivista à paixão pelo que faz. É uma liderança motivadora, equilibrada, e não para ganhar o lucro e ponto final”, sintetiza a professora Bianca Amorim, mestre em Sistemas de Gestão pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e diretora de projetos educacionais Instituto Ecológico Aqualung, que pesquisa o assunto há dez anos.
O perfil de um líder sustentável está para além do estereótipo de “abraçador de árvore”. Amorim destaca entre características necessárias olhar os desafios como oportunidade, ser uma pessoa interessada em estudar e encontrar soluções, ter perseverança, coragem e inteligência emocional, pois “um líder é atacado constantemente”, e ser consciente sobre a interdependência. Afinal, uma coisa está ligada à outra. O plástico em casa pode parar nos oceanos, e uma doença que surgiu na China pode impactar o planeta inteiro. E, claro, acreditar na sustentabilidade para poder convencer quem está ao seu redor. Mas essas capacidades podem ser desenvolvidas com estudo e vivência.
“Tem muitos exemplos de líderes que desenvolveram a capacidade por questão de sobrevivência e pelo bem da sua comunidade. Um exemplo é o Tião Santos, de Jardim Gramacho, que ficou conhecido com o filme ‘Lixo Extraordinário’. Ele foi criado na realidade do lixão e foi desenvolvendo a capacidade de liderança em base de conhecimento tácito”, avalia Bianca Amorim.
Para ela, desde a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), também conhecida como Eco 92 ou Rio 92, não se via um ano tão importante para o tema como 2019 – quando ainda nem sabíamos o que nos esperava no ano seguinte. Greta Thunberg ganhou notoriedade com o movimento Fridays for Future, a Greve pelo Clima, que se espalhou pelo mundo, acontecendo em 100 países e reunindo cerca de 1,5 milhão de jovens. Ainda naquele ano, a Business Roundtable, que reúne 181 CEOs, de grandes multinacionais que juntas têm faturamento superior a U$ 7 trilhões, se comprometeu a não se preocupar apenas com o lucro de seus acionistas, mas olhar para trabalhadores e as comunidades onde atuam. E ainda houve a carta aberta de Larry Fink, investidor bilionário que convoca CEOs a relacionarem lucro e propósito em seus negócios.
A pandemia veio para confirmar a tendência e a necessidade de adotarmos uma nova visão sobre hábitos de consumo e de produção.
Primeiro impulso é incômodo por solução
Muitas vezes a liderança parte de uma certa inquietação. Ana Rosa Cyrus, 23, sentia algo borbulhar dentro de si enquanto cursava pedagogia e, ao conhecer o Coletivo Jovem de Meio Ambiente do Pará, em Belém, sabia que tinha encontrado seu lugar. Tanto que o grupo tornou-se mais tarde objeto de estudo do seu Trabalho de Conclusão de Curso. Há dois anos, quando já estava na coordenação do coletivo, entre diversas outras atividades, criou o projeto Ruas Verdes, que parte da revitalização e da ressignificação do espaço público para resolver problemas sobre descarte irregular de resíduos. O envolvimento é tão grande que houve um dia de ação do Ruas Verdes que calhou de ser no mesmo dia da sua entrevista de mestrado, mas Ana não teve dúvidas e ajudou nos preparativos antes do compromisso, mesmo que isso significasse chegar no processo seletivo suja de terra. Atualmente, ela é mestranda de Geografia na Universidade do Estado do Pará (UEPA).
“Nosso ativismo emerge do que a gente é. Acabamos percebendo que ninguém vai operar pela gente. Sou uma mulher negra, se não batalhar pela minha sobrevivência, pelos meus e os territórios, ninguém vai fazer isso. É muito ligado em como a gente se enxerga no mundo. Falando daqui do meu lugar, para se tornar um líder, basta nascer. Nascer alguém da Amazônia, da América Latina, já é um líder. Porque tem que aprender a sobreviver e colocar a voz no mundo”, analisa.
É uma história semelhante à de Nayara Almeida, 22, uma das lideranças do movimento Fridays For Future, a Greve pelo Clima, no Brasil. Enquanto estudava biologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), percebeu que a academia não bastava e, ao pesquisar sobre o movimento iniciado por Greta Thunberg na Suécia, encontrou sua turma, no ano passado. Por meio das redes sociais, ela se conectou com outros jovens e ajudou a trazer o movimento para o Brasil. E ser ativista passou a ser um conceito que fazia sentido a partir desta conexão.
“[Para ser líder] tem que ter vontade, uma inquietação, alguma coisa tem que chamar atenção, algo para querer solucionar isso. Existem vários tipos de lideranças, mas aquilo que está incomodando vai acabar fazendo ir atrás e buscar outras pessoas. Não tem segredo. Tem que olhar para o lugar que está, o que tem ao seu redor, o que te motiva, e vai com o que você tem, olhando para dentro e o que a visão alcança. Não dá para ser líder muito longe”, conta.
Ambas fazem parte também da ONG Engajamundo, que trabalha tanto com formações como ações para fortalecer a influência dos jovens nas tomadas de decisão. Ana Rosa acredita que se organizar traz um amadurecimento: “A gente reconhece potencial de mudança grande e pode desencadear uma onda imensa ao redor do mundo a partir do momento que entender que pode alterar nossa realidade a partir de si. É um grande potencial mobilizador. Como coordenadora do grupo de gênero do Engajamundo, enxerguei uma mudança muito drástica de jovens a partir do momento que vêm para uma organização. Ao se unirem com outras pessoas, os olhos brilham e a fala muda”.
Al Gore forma “exército” de líderes para combater mudanças climáticas
A formação de líderes para inspirar ações na solução da crise climática, faz parte do treinamento global do The Climate Reality Project. A organização fundada pelo ex-vice-presidente dos Estados Unidos Al Gore vai oferecer o curso gratuito e online, em julho (em inglês). Atualmente, existem 600 líderes no Brasil, e mais de 20 mil espalhados por 150 países. Durante uma semana e com reuniões diárias de duas horas, os participantes, de qualquer idade e formação, podem aprender com especialistas do mundo inteiro sobre mudanças climáticas e como agir para mudar este quadro. Mas o treinamento não se encerra ao fim deste ciclo.
“Espera-se que você faça alguma coisa com esse conhecimento, diferente dos treinamentos convencionais. E que, através dos atos de liderança, você esteja sempre em movimento para ‘levar a palavra’ desse conteúdo por onde quer que você passa, onde puder falar sobre esse tema. O que a gente percebe é que, para além dos negacionistas e especialistas, entre essas duas pontas, tem um meio que ignora esse conteúdo e como afeta a vida delas. Líder climático tem que garantir que chegue a muitas pessoas e a quem não faz ideia”, explica Renata Moraes, gerente do The Climate Reality Project Brasil.
Com isto, os líderes formados pelo programa passam a fazer parte de um hub, uma espécie de rede social própria, onde divulgam seus atos de liderança, têm acesso a ferramentas como apresentações e e-books, além de poder se conectar com líderes do seu país e de outros locais do mundo, criar grupos de trabalho e desenvolver projetos em conjunto. Renata Moraes avalia que a formação colabora para que movimentos sociais se tornem organizados e tenham apoio dentro do terceiro setor, ainda mais em um contexto que avalia estar em retrocesso, diante das políticas ambientais do governo Jair Bolsonaro.
“A rede fortalece o ‘advocacy’ (ativismo), traz luz para movimentos para criar políticas públicas. Muitos movimentos acabam abafados nas suas panelas e têm poucas chances de ganhar mundo, mas ganham reforço por meio de um tema comum. Várias agendas juntas ganham força, porque uma causa fortalece todas as outras”, opina.
Desafios para a liderança sustentável pós-pandemia
A professora Bianca Amorim explica que existem diversos entraves para a liderança sustentável. Entre os entrevistados em sua pesquisa, apareceram dificuldades como o retorno financeiro não ser imediato, a necessidade de mudança de cultura, falta de braço e tempo para realizar as mudanças necessárias, além do conflito geracional (principalmente em empresas familiares). Para ela, a pandemia mostra a chance de oportunidade e ainda completa: “Empresas resistentes vão ficar para trás, sem investimentos de pessoas como Larry Fink”.
A questão geracional, em especial, é sentida tanto por Ana Rosa como Nayara. As duas ativistas trazem críticas à falta de espaço para “as juventudes” terem suas vozes ouvidas, e diz que as novas gerações conseguem ter uma visão mais complexa sobre as questões, relacionando justiça climática com pautas de gênero e raça, por exemplo, como explica Nayara: “Ser jovem tem a vantagem de não ter vivido muito, pois experiência não é tudo. A gente não tem olhar viciado. Uma coisa que vejo é dizerem ‘tentei isso e não deu certo, ou sempre fiz isso e deu certo’, mas o que é dar certo?”
Todos concordam que não há outra saída para aqueles que exercerem a liderança daqui em diante sem passar pela sustentabilidade. Os efeitos de seguir no modelo atual, são catastróficos. Mas ainda há tempo e esperança, segundo Renata Moraes: “Quando você sai do treinamento, tem essa certeza de que é muito importante, e que a gente tem as soluções. A pandemia mostrou que, quando isso é importante, tem um tema humanitário que globalmente vai afetar seres humanos, as pessoas param e resolvem. Está na agenda do dia. Isso me deu um certo otimismo”.
Fonte: UOL
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