ESTE ARTIGO É UM CAPÍTULO DO LIVRO MICROBIOLOGIA E HIGIENE DE ALIMENTOS – TEORIA E PRÁTICA.
Fonte: PINTO, U. M.; LANDGRAF, M. ; FRANCO, B. D. G. M. . Deterioração Microbiana de Alimentos. In: Jackline Freitas Brilhante de São José; Monise Viana Abranches. (Org.). MICROBIOLOGIA E HIGIENE DE ALIMENTOS – TEORIA E PRÁTICA. 1ed. Rio de Janeiro: Editora Rubio, 2019, v. 1, p. 33-52.
INTRODUÇÃO
A deterioração microbiana dos alimentos continua sendo um problema em todo o mundo, apesar da diversidade de técnicas de conservação disponíveis e da busca contínua por melhorias nos processos de produção, estocagem e distribuição dos alimentos.
Os desafios enfrentados pelo setor alimentício vão desde o plantio em polos agrícolas, passando pela distribuição em centros urbanos distantes, até o consumidor final. A complexidade da cadeia produtiva de alimentos requer mais profissionalização do setor, maior nível de controle em todas as etapas de produção e educação do consumidor para reduzir as oportunidades de acesso desses aos alimentos. Além do impacto direto gerado pelas perdas dos alimentos por deterioração, é importante considerar o impacto gerado pela produção de alimentos sobre o meio ambiente, especialmente sobre a utilização de água, ocupação de terra, pegada de carbono e potencial impacto sobre a biodiversidade.
Segundo dados da Food and Agriculture Organization (FAO) (2011), aproximadamente 1/3 de todos os alimentos destinados ao consumo humano são perdidos em todo o mundo, o que equivale a uma quantidade de 1,3 bilhões de toneladas de alimentos desperdiçadas anualmente. As razões para essa alta taxa de desperdício são diversas e os alimentos são descartados ou perdidos durante toda a cadeia de produção, iniciando no campo até o consumidor final.
O entendimento dos processos relacionados à deterioração microbiana dos alimentos, em especial as alterações químicas provocadas pelos micro-organismos, é essencial para a busca por métodos eficazes de preservação. Com a demanda global por sustentabilidade em todos os elos produtivos, a cadeia produtora de alimentos necessita minizar as perdas na produção, melhorar a produtividade do setor alimentício em todo o mundo, sem perder o foco no oferecimento de alimentos com qualidade e segurança para a população. Esse capítulo irá discutir as alterações provocadas pelos micro-organismos, inicialmente abordando os fatores determinantes relacionados aos processos de deterioração, seguindo por uma abordagem sobre as alterações químicas e sensoriais provocadas por bactérias, fungos filamentosos (bolores) e leveduras e terminando com uma discussão sobre a deterioração por grupos alimentícios específicos.
FATORES DETERMINANTES DA DETERIORAÇÃO MICROBIANA DOS ALIMENTOS
Os micro-organismos dependem de condições favoráveis para sua multiplicação. As características inerentes aos próprios alimentos têm grande influência no tipo e diversidade microbiana capaz de se desenvolver nos produtos. Essas características são conhecidas como fatores intrínsecos e incluem a atividade de água (aw), a acidez ou pH, o potencial de oxirredução (Eh), a composição química (presença de nutrientes), a presença de inibidores antimicrobianos naturais e a própria estrutura biológica que pode representar uma barreira a multiplicação microbiana. Já os fatores extrínsecos, relacionados ao ambiente em que o alimento está exposto, também são importantes para multiplicação dos microorganismos, sendo exemplificados pela temperatura, umidade relativa de equilíbrio e a atmosfera gasosa. Os materiais das embalagens e a exposição à luz também podem influenciar nos processos de deterioração, assim como a qualidade da matéria-prima e dos ingredientes e as condições higiênicas do processamento3 . Apesar dos vários fatores que afetam o desenvolvimento microbiano, os micro-organismos apresentam alta capacidade de adaptação, havendo grupos especializados para crescimento, de acordo com a disponibilidade de água, acidez do meio, composição química, potencial de oxirredução e temperatura. Além dessas características, eles são capazes de interagir uns com os outros de forma positiva ou antagônica, por meio da produção de metabólicos e moléculas sinalizadoras, influenciando nos processos de deterioração.
A atividade de água é a quantidade de água disponível para crescimento microbiano e outras funções biológicas como reações enzimáticas e químicas. Esta não deve ser confundida com a umidade do alimento, pois a água disponível ou livre depende das interações com os componentes dos alimentos, não apresentando, necessariamente, uma relação direta com a umidade do produto.
A aw dos alimentos é fator determinante no potencial de deterioração dos mesmos, sendo que a humanidade utiliza a desidratação há milhares de anos como forma de aumentar a vida útil de diversos alimentos. A redução da aw dos produtos alimentícios pode ser obtida por diversos mecanismos como a desidratação pelo calor (secagem), desidratação a frio e a vácuo pelo processo de liofilização, adição de solutos como sal ou açúcar, dentre outros. Portanto, alimentos com aw alta, como os produtos frescos, tendem a se deteriorar mais rapidamente que aqueles com baixo conteúdo de água disponível, devido à multiplicação acelerada das bactérias. Cada micro-organismo apresenta valores mínimos, ótimos e máximos de aw para seu desenvolvimento. Geralmente a maioria das bactérias deterioradoras não cresce bem em aw inferior a 0,91; já o mesmo grupo de leveduras inicia crescimento em aw de 0,88, enquanto que os bolores podem deteriorar produtos com aw superior a 0,80.
A diminuição da aw de um alimento provoca um aumento na fase lag do crescimento microbiano, uma diminuição da velocidade de multiplicação e também afeta negativamente o tamanho final da população microbiana. Isso porque todas as atividades metabólicas são afetadas, já que dependem de água. Como resposta à condição de escassez de água, os micro-organismos acumulam solutos compatíveis, a exemplo de prolina, íons K+, glutamato, glutamina, betaína, trehalose, glicerol, álcoois, entre outros, para evitar a perda de água da célula e mitigar os efeitos deletérios da pressão osmótica sobre a membrana celular.
O pH e mais precisamente a acidez dos alimentos é fator determinante para a multiplicação dos micro-organismos. A maioria dos deterioradores se multiplica otimamente em pH próximo à neutralidade (6,6 a 7,5) . Normalmente, bolores suportam maiores variações de pH do que as leveduras, que por sua vez, suportam maiores variações desses valores que as bactérias. Entretanto, existem bactérias melhor adaptadas a condições de baixo pH, como as bactérias láticas que são favorecidas pela inibição da microbiota competidora.
Ao avaliar o efeito do pH de um produto sobre o crescimento microbiano, é essencial conhecer a influencia do tipo de ácido presente no alimento. Alimentos acidificados com ácido cítrico, fosfórico ou tartárico permitem crescimento em valores de pH mais baixo que aqueles acidificados com ácido acético ou lático. Entre outros fatores, o pKa de cada ácido é de extrema importância pois influencia na concentração de ácido não dissociado capaz de penetrar na célula microbiana e se dissociar no citoplasma do micro-organismo. Esse fenômeno provoca diminuição do pH intracelular, com consequente alteração nos mecanismos de homeostase microbiana podendo levar à inativação celular.
De acordo com o pH, os alimentos podem ser classificados como alimentos de baixa acidez (pH superior a 4,5), alimentos ácidos (pH entre 4,0 e 4,5) e alimentos muito ácidos (pH inferior a 4,0). Os alimentos de baixa acidez são os mais propícios à multiplicação microbiana e, portanto, à deterioração.
O potencial de oxirredução (Eh) mede a capacidade de um sistema em trocar elétrons entre substâncias químicas que se tornam oxidadas ou reduzidas, conforme o potencial. O Eh é medido em unidades de mV, sendo que quanto mais oxidado um determinado composto ou meio, mais positivo será seu potencial, enquanto que substratos reduzidos apresentarão valores negativos de potencial elétrico.
Várias substâncias presentes nos alimentos podem atuar como receptores ou doadores de elétrons. Por exemplo, se oxigênio estiver presente em um sistema, este poderá atuar como aceptor de eletróns, tornando o Eh positivo. Outros compostos como NO3 ou SO4 também podem atuar como receptores de elétrons, porém outras substâncias que não apresentam oxigênio em sua estrutura também podem atuar como aceptoras de elétrons, influenciando o Eh. Algumas substâncias presentes nos alimentos podem manter o potencial negativo como exemplo dos grupos SH em carnes, o ácido ascórbico e açúcares redutores em vegetais.
Os micro-organismos aeróbios exemplificados pela maior parte dos bolores, algumas leveduras oxidativas e muitas bactérias deterioradoras (Pseudomonas, Moraxella, Acinetobacter, Flavobacterium, entre outras) requerem Eh positivos para crescimento (entre +350 e +500 mV). Já os micro-organismos anaeróbios não toleram potenciais positivos e normalmente requerem Eh inferiores a -150 mV, exemplificados por bactérias do gênero Clostridium. As bactérias da família Enterobacteriaceae e as bactérias láticas multiplicam-se bem em potenciais positivos ou negativos, sendo denominadas de anaeróbias facultativas. Existem também os micro-organismos microaerofíliocos que requerem condições ligeiramente reduzidas, a exemplo dos lactobacilos e estreptococos.
Em sistemas alimentares, a composição química do alimento assim como as condições de estocagem influenciam no Eh. Alimentos frescos como os de origem vegetal normalmente possuem Eh entre +300 e +400 mV, sendo deteriorados por bactérias e bolores aeróbios. Carnes normalmente apresentam potencial negativo (-200 mV), porém ao serem moídas, esse potencial pode chegar a +200 mV. Queijos apresentam valores muito variáveis conforme as condições de fabricação, podendo variar entre -20 e -200 mV. Além disso, o processamento por calor pode afetar os compostos redutores, alterando o Eh. A presença ou ausência de oxigênio em um sistema alimentar, dependendo do tipo de estocagem, tem grande influência sobre a microbiota deterioradora. Bactérias do gênero Clostridium, sob condições anaeróbias, irão provocar putrefação de carnes, enquanto que na presença de oxigênio, fungos do gênero Penicillium podem produzir características desejáveis em queijos maturados.
O crescimento microbiano depende diretamente da presença de nutrientes disponíveis para síntese de componentes celulares e produção de energia. Para tanto, os seguintes nutrientes devem estar disponíveis em quantidades adequadas: água, fonte de energia, fonte de nitrogênio, vitaminas e sais minerais. Embora não seja considerada um nutriente, a água também é essencial, conforme já discutido anteriormente. As fontes de energia utilizadas pelos micro-organismos incluem os açúcares, álcoois e os aminoácidos. Alguns são capazes de utilizar carboidratos complexos como amido e celulose, pela produção de hidrolases extracelulares, outros podem utilizar lipídeos (embora poucos micro-organismos o façam). A obtenção de fontes de nitrogênio pelos micro-organismos depende geralmente dos aminoácidos, mas outros compostos nitrogenados como os nucletídeos podem ser metabolizados, enquanto outros utilizam peptídeos e proteínas complexas pela produção de proteaeses extracelulares que facilitam a quebra e obtenção de aminoácidos livres. De modo geral, os compostos simples como áçúcares e aminoácidos são utilizados primeiro, antes que substratos complexos sejam atacados pelos micro-organismos.
As vitaminas e os minerais são fatores de crescimento que afetam a microbiota contaminante dos alimentos uma vez que alguns microorganismos dependem da presença das mesmas. Bactérias Gram-positivas são mais exigentes quanto as necessidades de vitaminas que as Gramnegativas, enquanto que os bolores são capazes de sintetizar esses fatores. Frutas geralmente apresentam baixas quantidades de vitaminas do complexo B, o que aliado a um baixo pH e potencial Eh positivo favorece a deterioração por fungos, ao invés de bactérias. Os minerais são importantes para a multiplicação microbiana, especialmente o sódio, potássio, cálcio e magnésio. Ferro, cobre, manganês, molibdênio, zinco, cobalto, fósforo e enxofre também podem ser considerados importantes, pois mesmo em concentrações reduzidas, podem estar envolvidos em muitas reações enzimáticas.
Todos os alimentos contem água, fontes de energia, fontes de nitrogênio, vitaminas e sais minerais, porém as quantidades podem variar grandemente. Em geral, as carnes contêm maiores proporções de proteínas, lipídeos, minerais e vitaminas, apresentando pouca quantidade de carboidratos. O leite, contudo, contem quantidades suficientes de todos os nutrientes necessários para multiplicação microbiana. Já os alimentos de origem vegetal são normalmente ricos em carboidratos e alguns podem conter baixa quantidade de proteínas, minerais e algumas vitaminas.
Apesar da presença de vários nutrientes, muitos alimentos apresentam substâncias que exercem efeito antimicrobiano, retardando ou impedindo a multiplicação microbiana. Alguns condimentos podem conter óleos essenciais com atividade inibitória, como por exemplo: eugenol do cravo, alicina do alho, aldeído cinâmico e eugenol da canela, alil-isotiocianato da mostarda e o timol e carvacrol em orégano. O efeito inibitório de várias substâncias do leite como a lactoferrina, as imunoglobulinas, o sistema lactoperoxidase e a lisozima também é conhecido. Frutas também podem conter ácidos orgânicos e óleos essenciais e algumas plantas como brócolis e repolho podem gerar tiocianatos que apresentam propriedades antifúngicas e antibacterianas. Os ovos também apresentam proteção contra o ataque microbiano pela presença de lisozima, conalbumina e ovotranferrina, além do elevado pH da clara.
As estruturas biológicas também funcionam como barreira contra a penetração microbiana a exemplo das cascas das frutas, dos ovos e nozes, da pele dos animais e da película das sementes.
Os parâmetros do ambiente de estocagem dos alimentos que afetam os micro-organismos são a temperatura, umidade relativa e a composição gasosa do ambiente. A umidade relativa tem influência direta na aw dos alimentos de forma que alimentos desidratados necessitam ser estocados em ambientes com baixa umidade para evitar que o produto aborva água do meio e com isso tenha sua aw aumentada. De forma simplificada, a composição gasosa do ambiente de estocagem interfere no Eh. A estocagem dos produtos em atmosfera livre de oxigênio favorece o desenvolvimento dos anaeróbios e dos facultativos. De forma semelhante, a estocagem em ambiente em contato com o ar permite o crescimento dos aeróbios e anaeróbios facultativos.
O fator ambiental de maior influencia na multiplicação microbiana é a temperatura de estocagem dos produtos. Pelo fato de a temperatura influenciar nas reações enzimáticas e bioquímicas, na fluidez da membrana e enovelamento do DNA, RNA e ribossomos, cada micro-organismo apresenta uma faixa de multiplicação, variando entre a temperatura mínima, a ótima e uma máxima de crescimento.
Para a segurança e qualidade dos alimentos refrigerados, os micro-organismos psicrófilos e os psicrotróficos devem ser controlados. Alimentos armazenados à temperatura ambiente são mais propícios ao desenvolvimento dos mesófilos, enquanto que aqueles processados termicamente podem ser deteriorados pelos termófilos.
Os principais agentes deterioradores de carnes, pescado, ovos e alimentos de origem vegetal, refrigerados, são representados pelas bactérias dos gêneros Pseudomonas, Achromobacter, Serratia, Aeromonas, Alcaligenes, Enterococcus, Flavobacterium, Micrococus, Lactobacillus, Bacillus, Brochothrix, Shewanella, Pectobacterium, Psychrobacter, entre outros. Bolores e leveduras também são capazes de se desenvolver em baixas temperaturas.
As espécies mesófilas incluem um elevado número de micro-organismos presentes nos alimentos. Normalmente não se desenvolvem a temperaturas de refrigeração, mas deterioram os produtos rapidamente quando em condições apropriadas para seu desenvolvimento.
Os micro-organismos que podem sobreviver a temperaturas de pasteurização são os termófilos e os termodúricos e incluem bactérias dos gêneros Micrococcus, Bacillus, Geobacillus, Alicyclobacillus, Clostridium, Lactobacillus, Pediococcus e Enterococcus. Aqueles dos gêneros Bacillus e Clostridium apresentem especial importância para a indústria de enlatados, uma vez que os esporos apresentam alta resistência térmica, conforme será discutido posteriormente.
Além dos fatores já citados, a interação entre os micro-organismos, seja benéfica ou prejudicial, também deve ser considerada. Uma interação prejudicial ou antagônica comum é a competição por nutrientes, como o que ocorre na captura de ferro por certas bactérias. Alterações no pH do meio também podem ser provocadas por alguns micro-organismos como as bactérias láticas, além da produção de bacteriocinas, criando condições adversas para o desenvolvimento de competidores.
Uma outra forma de interação se dá pela produção de algum nutriente ou condição ambiental por um dado micro-organismo suprindo a necessidade de outro, nesse caso, provocando uma interação favorável conhecida como metabiose. Esta pode ser exemplificada pela utilização e remoção de oxigênio do meio pelos aeróbios, com consequente favorecimento dos anaeróbios ou pela produção de algum nutriente que estimule o desenvolvimento de outro organismo.
Por último, os micro-organismos podem também interagir de forma coordenada para expressão de fenótipos de benefício comunitário como a produção de enzimas hidrolíticas extracelulares, formação de biofilmes ou a produção de biosurfactantes que estimulam a motilidade em superfícies. Esse processo é conhecido como quorum sensing10,11. Acredita-se que a inibição do quorum sensing possa aumentar a qualidade e segurança dos alimentos, uma vez que diversos fenótipos são controlados pelo sistema, representando uma forma adicional de controle a ser desenvolvida.
ALTERAÇÕES QUÍMICAS E SENSORIAIS PROVOCADAS PELOS MICRO-ORGANISMOS
Havendo condições propícias, as bactérias normalmente serão as responsáveis pela rápida deterioração dos alimentos, uma vez que possuem tempos de geração mais curtos que aqueles dos bolores e leveduras. Entretanto, devido às características intrínsecas de alguns alimentos como a baixa aw ou pH ácido, os fungos podem ser os responsáveis pela deterioração.
A deterioração dos alimentos é um processo complexo que pode ser resultado de uma sucessão de reações enzimáticas originárias dos micro-organismos deterioradores ou da própria matriz alimentar como as enzimas líticas presentes nos tecidos. Pode ainda ser associada a reações não enzimáticas, danos físicos ou químicos, a exemplo da descoloração de carnes e oxidação de gorduras. Ademais, a deterioração dos alimentos, do ponto de vista do consumidor, é percebida de forma subjetiva, altamente influenciada por aspetos culturais, econômicos, da sensibilidade de cada individuo e da intensidade das alterações. Desta forma, a deterioração pode ser entendida como qualquer mudança sensorial em um produto alimentício que o torna inaceitável ao consumidor, sendo a deterioração microbiana a mais comum.
Devido à diversidade de micro-organismos e também de produtos alimentícios, as alterações químicas e sensoriais provocadas pela deterioração microbiana irão depender dos fatores intrínsecos e extrínsecos, ou seja, do tipo de produto avaliado, das suas condições de armazenamento e do tipo e população dos micro-organismos que participaram do processo de deterioração. Portanto, não é uma tarefa simples associar um determinado defeito no alimento a um micro-organismo específico, embora muito esforço tenha sido dispensado para o entendimento desse processo. Apesar desses entraves, grupos específicos de micro-organismos podem ser preditos com base no conhecimento da origem do alimento, dos seus principais componentes e alguns parâmetros de conservação como temperatura, atmosfera, aw e pH.
Nos processos de deterioração, os metabólitos produzidos pelos micro-organismos provocam alterações indesejadas de sabor e odor nos alimentos, que são normalmente os primeiros sinais de decomposição. Porém, com o avanço do estágio de degradação, há também o surgimento de alterações visuais como descoloração, presença de limo e alterações na própria estrutura dos produtos, como mudança na sua textura devido à degradação de matrizes poliméricas, acúmulo de gás ou formação de espuma e liberação de exsudados. A deterioração microbiana em si pode ser decorrente do crescimento dos micro-organismos ou da produção de enzimas extracelulares ou enzimas liberadas após lise celular.
Outro aspecto importante a ser considerado é o limiar populacional necessário para provocar alterações sensoriais nos produtos. Embora não haja uma relação precisa entre a população microbiana e defeitos sensoriais e químicos dos alimentos, além da própria variação entre diferentes alimentos, a população de micro-organismos e os defeitos encontrados em produtos deteriorados podem ser correlacionados. A literatura especializada recomenda que contagens totais de micro-organismos sejam inferiores a 105 UFC/g ou mL de produto. Segundo Jay, Loessner e Golden (2005), deterioração microbiana não é observada em populações inferiores a 106 UFC/g, /mL ou /cm2, a exceção de leite cru que pode apresentar acidez na faixa de 105 -106. Entre 106 -107 alguns produtos podem estar no limiar de deterioração, a exemplo de carnes embaladas a vácuo com odores já sendo perceptíveis. Vegetais e carnes frescas, quando contaminados com populações na ordem de 108 UFC/g ou /mL, já mostram odores desagradáveis pronunciados, enquanto que a maioria dos alimentos apresenta sinais marcantes de deterioração em populações próximas a 109 e populações superiores são capazes de provocar mudanças estruturais nos produtos. Assim, a qualidade inicial dos produtos, com carga microbiana inicial a mais reduzida possível, e condições de estocagem que aumentem o tempo de geração dos micro-organismos são ideais para o prolongamento da vida útil dos alimentos.
As alterações químicas mais comuns, provocadas pela microbiota deterioradora sobre alguns substratos alimentícios, são mostradas na Tabela 1.
Embora haja predomínio de alguns microorganismos principais nos processos de deterioração, os alimentos frescos contêm alta diversidade de bactérias, bolores e leveduras. Somente os micro-organismos com menor tempo de geração, sob as condições de estocagem do produto, é que serão capazes de se multiplicar e provocar deterioração. Tal crescimento normalmente é acompanhado por uma sucessão microbiana, com declínio de determinadas espécies e favorecimento de outras, a medida que o produto é decomposto.
ALTERAÇÕES RELACIONADAS AO CRESCIMENTO DE BACTÉRIAS
Diversas alterações químicas e sensoriais são provocadas pelo metabolismo bacteriano, como: o surgimento de odores desagradáveis devido à produção de compostos voláteis; o aparecimento de pigmentos devido à produção ou oxidação de compostos coloridos, as alterações de textura devido à quebra de pectina nos vegetais ou o amolecimento de carnes devido a proteases e à coagulação de leite por enzimas proteolíticas ou acidez, o acúmulo de gases como CO2, H2 e H2S; a formação de limo pela produção de polissacarídeos extracelulares; o acúmulo de exsudatos pela hidrólise de substratos e liberação de água.
O metabolismo de carboidratos pelos microorganismos tem por finalidade a geração de energia para crescimento. Quando carboidratos simples (monossacarídeos) são utilizados pelo metabolismo oxidativo, irão gerar como produtos finais o CO2 e água, sem acúmulo excessivo de produtos intermediários. Entretanto, quando esses compostos são utilizados de forma anaeróbia, diversos produtos são formados a exemplo de CO2, H2, lactato, acetato, formato, propionato, ácido acético, butirato, etanol, propanol, deacetil, acetoína, dextranos, entre outros.
A utilização de polissacarídeos é realizada por poucos micro-organismos, já que estes devem produzir enzimas extracelulares capazes de hidrólisar esses polímeros. Entre os principais polissacarídeos encontrados nos alimentos, destacam-se o amido utilizado pelos microorganismos amilolíticos (bactérias e bolores), a celulose utilizada por algumas bactérias celulolíticas e principalmente fungos, e as pectinas usadas por ambos os grupos. Essas últimas são polímeros de ácido galacturônico encontrados nas paredes celulares e espaços intercelulares dos tecidos vegetais. Os chamados organismos pectinolíticos provocam podridão mole pela produção de enzimas pécticas, como é o caso das bactérias do gênero Erwinia e Pectobacterium.
Alimentos ricos em proteínas serão deteriorados por micro-organismos capazes de produzir proteases e peptidases, com liberação de peptídeos e aminoacidos livres. Os principais produtores dessas enzimas são as bactérias dos gêneros Clostridium, Bacillus e Pseudomonas. Em seguida, há produção de outro grupo de enzimas chamadas de descarboxilases que produzem aminas livres (aminas biogênicas), responsáveis por defeitos sensoriais especialmente relacionados a odores desagradáveis. Pode haver também o desenvolvimento de odores pútridos, decorrentes de desaminação de aminoácidos e liberação de amônia. Já a presença de aminoácidos como cisteína e metionina pode levar a odores de ovo podre (H2S).
Na presença de O2, a degradação dos aminoácidos ocorre por desaminação oxidativa com produção de amônia e alfa-cetoácidos que são usados como fonte de energia pelos microorganismos. A desaminação redutora em anaeróbios estritos tem como produtos a amônia e ácidos orgânicos. Pescados, por exemplo, podem deteriorar pela produção de ácidos orgânicos de baixo peso molecular como ácido fórmico, acético, propiônico, butírico e outros. De forma geral, a degradação de proteínas e compostos nitrogenados pode promover a produção de CO2, H2, NH3, H2S, aminas biogênicas, mercaptanos e ácidos, muitos relacionados a odores desagradáveis.
Outra reação característica é conhecida como reação de Stickland que envolve a combinação da desaminação oxidativa da L-alanina com a desaminação redutora de um outro aminoácido como a glicina, resultando na formação de ácido acético, CO2 e amônia8,13. Outros aminoácidos podem atuar como doadores de hidrogênio nessa reação gerando ácidos como produtos finais. Aminoácidos também podem ser descarboxilados de forma anaeróbia produzindo aminas biogênicas como a histamina, putrescina, cadaverina, entre outros. Esses compostos são voláteis e podem ser utilizados como indicadores de deterioração de produtos cárneos e pescados. Diferentemente do que acontece com a metabolização de carboidratos, a degradação de proteínas provoca um aumento no pH do alimento devido à produção de aminas e NH3.
Os lipídeos podem ser degradados para ácidos graxos, glicerol, hidroperóxicos, aldeídos e cetonas. A degradação das gorduras, conhecida como rancificação, se dá por meio de reações de hidrólise, oxidação e outros processos.
Da mesma forma que polissacarídeos são hidrolisados por algumas bactérias, outras são capazes de sintetizar polissacarídeos extracelulares, por meio da polimerização de dissacarídeos. Entre essas bactérias, destacam-se Leuconostoc mesenteroides, Bacillus subtilis e E. coli. As alterações em produtos sólidos são observadas pela presença de limo na superfície, a exemplo de carnes contaminadas pelas Pseudomonas. Em produtos líquidos, há um aumento da viscosidade do alimento como no caso de leite contaminado com as bactérias previamente mencionadas ou por outras.
Os problemas relativos a alterações de coloração estão relacionados a diversos gêneros produtores de pigmentos. Alguns se difundem no produto, devido à solubilidade em água, enquanto outros são visíveis onde há pontos de crescimento bacteriano. As bactérias do gênero Serratia são conhecidas por produzirem pigmentos róseoavermelhados; Flavobacterium spp., por sua vez, produzem pigmentos que variam do amarelo ao vermelho. Pigmentos que variam de róseo ao vermelho também são produzidos por bactérias halófilas em produtos cárneos e pescados. Por fim, as bactérias do gênero Pseudomonas podem produzir pigmentos azul-esverdeados e fluorescentes, além de outros não fluorescentes, provocando problemas em produtos diversos.
ALTERAÇÕES RELACIONADAS AO CRESCIMENTO DE FUNGOS FILAMENTOSOS E LEVEDURAS
Fungos filamentosos crescem em ampla faixa de aw, pH e temperaturas e usam um grande número de substratos como ácidos orgânicos, proteínas, lipídeos, mas principalmente os carboidratos. Assim, eles deterioram produtos ácidos como frutas e sucos de frutas, alimentos com umidade intermediária como produtos de panificação, cereis, bebidas e produtos fermentados provocando grandes perdas econômicas14.
Os bolores são micro-organismos aeróbios em grande maioria, apresentando metabolismo oxidativo a partir de carboidratos com produção majoritária de CO2 e H2O. Normalmente são produtores de enzimas hidrolíticas que atuam sobre polissacarídeos como amido e pectina. Algumas espécies dos gêneros Alternaria, Aspergillus, Penicillium, Mucor e Rhizopus produzem proteinases e lipases extracelulares.
Um dos defeitos mais comuns causados pela deterioração por fungos filamentosos é a formação de micélio, fragmentos de hifas e esporos que podem ser visíveis ao consumidor, tornando o produto inaceitável. O micélio é um conjunto de hifas com aspectos visuais variáveis como seco ou úmido, gelatinoso, aveludado, podendo ainda apresentar coloração em diferentes tonalidades de verde, cinza ou preto, castanho, amarelo e vermelho. A presença desses em alimentos industrializados é forte indicação de uso de matéria prima de baixa qualidade ou de falhas durante o processamento.
Os fungos comumente provocam deterioração de grãos e cereais armazenados além de poderem produzir micotoxinas causando perdas e tornando esses alimentos insalubres. Além disso, alguns fungos são fitopatogênicos e com isso causam perdas na produção de frutas, cereais e hortaliças.
Não obstante os inúmeros problemas causados pelos fungos em alimentos de baixo teor de umidade, ou pH ácido ou aqueles ricos em carboidratos, muitos bolores são psicrotróficos como algumas espécies de Penicillium, Cladosporium, Trichothecium e Aspergillus. Espécies halófilas de bolores, como o Sporendonema expizoun, podem provocar deterioração pela formação de pontos pretos ou castanhos nas superfícies de peixes salgados e parcialmente desidratados como bacalhau salgado.
A produção de micotoxinas é outro aspecto muito relevante que resulta do crescimento de fungos filamentosos em alimentos. Existem mais de 400 micotoxinas conhecidas atualmente, sendo as aflatoxinas as mais conhecidas. A produção de micotoxinas pode estar contida no próprio micélio ou excretada no alimento, especialmente alimentos líquidos que facilitam sua difusão. Um grande problema relacionado às micotoxinas é que são normalmente termorresistentes15. Dessa forma, a formação de microtoxinas pelos fungos micotoxigênicos deve ser evitada, pelo controle dos parâmetros de armazenamento (temperatura e umidade relativa, principalmente).
As leveduras apresentam características fisiológicas similares aos bolores e por isso podem deteriorar produtos ricos em carboidratos e que tenham condições seletivas favoráveis ao seu desenvolvimento como baixo pH e atividade de água inferior a 0,94. Os vegetais são o habitat mais comum das leveduras, já que apresentam boas condições para sua multiplicação.
As leveduras atuam principalmente sobre carboidratos, tanto pelo processo oxidativo quanto fermentativo. Leveduras oxidativas são rugosas e brancas, atuando na superfície de produtos ácidos (picles, sucos envasados, superfícies de dornas e tanques de fermentação). Espécies dos gêneros Pichia, Hansenula, Debaryomyces, Candida e Trichsporon, ao utilizarem ácidos orgânicos e álcoois para crescimento, elevam o pH do alimento e com isso podem propiciar o desenvolvimento de micro-organismos com baixa resistência a ácidos, a exemplo de Clostridium botulinum em picles e outros alimentos ácidos.
Muitas leveduras toleram condições variáveis de pH entre 1.5 e 10. Porém, a maioria cresce muito bem em meios com média acidez e pH entre 3,5 e 6, normalmente encontrados em sucos de frutas e bebidas. As leveduras do gênero Zigosaccharomyces e especialmente as espécies Z. bailii e Z. rouxii têm sido muito estudadas por serem importantes agentes de deterioração de sucos de frutas, molhos, refrigerantes e catchup16. Por apresentar resistência a conservantes como ácido benzoico e sorbatos, além de crescer em meios com até 10% de NaCl, altas concentrações de açúcar e ainda tolerar concentrações moderadas de etanol, o controle desse micro-organismo se faz importante para evitar perdas na produção.
A conservação de produtos ácidos se dá primariamente por tratamentos térmicos, uma vez que bolores e leveduras apresentam resistência baixa ou moderada ao calor. Sendo assim, o tratamento de pasteurização garante, na maioria dos casos, a prevenção da deterioração desses produtos16.
DETERIORAÇÃO DOS DIFERENTES GRUPOS DE ALIMENTOS
ALIMENTOS DE ORIGEM ANIMAL
LEITE E DERIVADOS
Apesar dos sistemas inibitórios presentes, o leite é notoriamente um ótimo meio de cultivo para os micro-organismos pela alta atividade de água, pH favorável próximo ao neutro e presença de uma grande quantidade de nutrientes. A contaminação do leite cru pode se dar por diversas vias e com isso, a diversidade microbiana pode ser considerada alta. A deterioração deste produto pode ocorrer pelo metabolismo da lactose, de compostos protéicos, ácidos graxos e da hidrólise de gorduras.
Sabores e odores ácidos indesejáveis pela fermentação de açúcares pelas vias homolática e heterolática podem ser observados quando a temperatura de estocagem do leite não é controlada.
Devido à ampla adoção da refrigeração na cadeia produtora de leite, as bactérias psicrotróficas Gram-negativas Pseudomonas, Alcaligenes, Flavobacterium e algumas Enterobacteriaceae predominam nesse processo. Como as Pseudomonas não metabolizam a lactose, a utilização de compostos protéicos leva ao aparecimento de sabores desagradáveis como amargo, de fruta ou de “sujo”. Alterações na viscosidade também podem ocorrer devido à produção de proteases e sabores de ranço podem ser decorrentes da produção de lipases. As proteases e lipases desses micro-organismos são termorresistentes e continuam atuando em produtos pasteurizados ou esterilizados, causando problemas de sabor e viscosidade durante a vida útil desses produtos17. Odores de estábulo também podem ser observados pela multiplicação de Enterobacter.
Leite pasteurizado pode ser deteriorado por micro-organismos termodúricos que sobrevivem ao processamento térmico como bactérias dos gêneros Micrococcus, Enterococcus, alguns Lactobacillus, Streptococcus, Corynebacterium, e esporos de Bacillus. Porém, devido à estocagem sob refrigeração, a maior preocupação advém de contaminantes pós-processamento de origem psicrotrófica. Desta forma, os defeitos de sabor e aroma são resultantes da multiplicação desses contaminantes. Além disso, esporos de Bacillus psicrotróficos têm sido reportados como causadores de defeitos na viscosidade e sabor relacionados a enzimas proteolíticas que causam coagulação doce do produto.
Defeitos relacionados a rancidez ocorrem pela produção de enzimas lipolíticas que atuam sobre as gorduras do leite ou de produtos derivados. Os produtos relacionados à deterioração são cetonas, aldeídos e ácidos que provocam o surgimento de odores e sabores característicos de rancificação. Os principais micro-organismos responsáveis são as Pseudomonas, Alcaligenes, Bacillus, Proteus, Clostridium, além de bolores e leveduras.
Alterações de viscosidade que não são relacionadas a enzimas que provocam coagulação doce ou decorrentes de acidificação por bactérias láticas são originadas pelo material capsular de células bacterianas. Esse aumento de viscosidade do leite ocorre pelas espécies encapsuladas de Alcaligenes viscolatis, ou pelo desenvolvimento de Enterobacter spp, Klebsiella oxytoca, Lactococcus lactis e Lactobacillus spp.
Havendo condições de temperatura propícias, o leite e os derivados podem ser acidificados e a produção de gás observada pelo crescimento de coliformes, Clostridium spp, alguns Bacillus e bactérias propiônicas e heteroláticas.
Alterações na cor podem ocorrer devido à presença de micro-organismos como Pseudomonas que provocam o surgimento de pigmentos azuisesverdeados. Pigmentos amarelados podem ser produzidos por Flavobacterium e pigmentos vermelhos por Serratia marcescens, Micrococcus roseus e algumas leveduras.
CARNES E DERIVADOS
As carnes também são meios propícios ao desenvolvimento microbiano pelo alto conteúdo de nutrientes, especialmente substâncias nitrogenadas, minerais e vitaminas, além do pH e aw favoráveis à maioria dos micro-organismos. A atividade microbiológica é a principal causa de deterioração de produtos cárneos.
Os tipos e populações iniciais dos contaminantes dependem das condições de manejo dos animais, das condições de abate, processamento, estocagem e embalagem. A atmosfera que envolve os produtos cárneos e a temperatura de estocagem tem relevante influencia no tipo de deterioração observada19.
Em condições de aerobiose e em estocagem refrigerada, as carnes serão deterioradas predominantemente por aeróbios e anaeróbios facultativos como: Pseudomonas spp. Brochothrix thermosphacta, Shewanella putrefaciens, Carnobacterium spp., Enterobacteriaceae, Lactobacillus spp., entre outras bactérias do ácido lático18. Os principais defeitos são relacionados a sabores e odores desagradáveis, mas descoloração e produção de gás também podem ser observadas, como mostra a Tabela 2.
Em condições de anaerobiose (interior da carne, vácuo e outras atmosferas gasosas como em embalagens com atmosfera modificada), os defeitos principais são relacionados ao sabor azedo, descoloração, produção de gás, limo e redução do pH pelas bactérias B. thermosphacta, bactérias do ácido lático (Carnobacterium, Lactobacillus, Leuconostoc), S. putrefaciens e Weissella8,12.
A acidificação resulta do acúmulo de ácidos orgânicos como o fórmico, acético e propiônico pela atividade microbiana sobre moléculas complexas. Pode haver proteólise, sem putrefação, por bactérias anaeróbias ou facultativas como clostridios butíricos e coliformes que também contribuem para a acidificação.
A putrefação é a decomposição anaeróbia de proteínas com produção de odores extremamente desagradáveis como H2S, indol, escatol, putrescina, cadaverina, mercaptanos, entre outros. Bactérias facultativas e principalmente as do gênero Clostridium são os principais causadores de putrefação em carnes. Em produtos embutidos, quando a fermentação lática é excessiva, há o acúmulo de ácido lático e até outros ácidos.
Em outros casos essa fermentação pode ser responsável pela formação de limosidade superficial, principalmente se houver sacarose no produto. A fermentação lática pode ainda causar esverdeamento do produto. Os principais defeitos de carnes curadas são relacionados à formação de limosidade superficial e emboloramento. O limo é resultante do crescimento de bactérias láticas, Micrococcus e leveduras que crescem em temperatura de refrigeração na superfície dos produtos que apresentem umidade apropriada. O armazenamento em baixas temperaturas e o uso de embalagens a vácuo retardam o crescimento desses micro-organismos, especialmente fungos.
Carnes de frango são deterioradas principalmente por bactérias que crescem na superfície. Odores indesejáveis podem ser notados quando a contaminação está em torno de 106 UFC/cm2. Frangos refrigerados são deteriorados por Pseudomonas (tanto fluorescente como não fluorescente), Acinetobacter, Flavobacterium, Corynebacteriumm, S. putrefaciens e leveduras. Em temperaturas mais altas, a deterioração é decorrente da multiplicação de Alcaligenes e Flavobacterium. Com o aumento da população desses micro-organismos há o aparecimento de limosidade superficial e até pigmentação esverdeada causada pelo pigmento pioverdina de Pseudomonas. A retirada da pele e tecidos externos, bem como a lavagem da carcaça com água be boa qualidade, ácidos orgânicos, peróxido de hidrogênio, dióxido de cloro, aplicação de vapor sobre a carcaça ou a combinação de dois ou mais métodos é recomendada para reduzir a contaminação das aves.
PESCADOS E FRUTOS DO MAR
Pescado e frutos do mar são alguns dos alimentos mais susceptíveis à deterioração microbiana por possuirem alta aw, pH próximo à neutralidade, composição química favorável e alto teor de gorduras insaturadas propícias à oxidação. Pelo baixo teor de carboidratos, esses produtos são deteriorados primordialmente pela utilização de compostos nitrogenados como óxido de trimetilamina (TMAO), aminoácidos, bases nitrogenadas voláteis, ácido úrico e uréia, o que resulta em aumento do pH do produto. TMAO está presente em peixes marinhos e em algumas espécies de peixes de água doce. Essa substância é conhecida por aumentar o Eh em peixes frescos e bactérias como S. putrefaciens, Photobacterium phosphoreum e Vibrionaceae são capazes de utilizá-la como aceptor de elétrons na respiração anaeróbia produzindo trimetialamina (TMA), que resulta em odor e sabor desagradável20.
Vale ressaltar que a deterioração de pescados ocorre pela combinação de vários fatores. O primeiro é a autólise devido à ação de sucos digestivos que atravessam a parede intestinal após a morte, atuando nos tecidos musculares e facilitando a disseminação dos micro-organismos do trato intestinal para outros tecidos. Enzimas dos próprios tecidos e pele dos pescados também levam ao amolecimento e desintegração dos músculos e consequentemente acelerando a disseminação microbiana. Além disso, a oxidação de gorduras insaturadas durante a estocagem também provoca alterações indesejadas no pescado. A multiplicação microbiana contribui e acelera os processos de deterioração21.
A microbiota contaminante dos pescados é influenciada pelo habitat. A microbiota de peixes de águas temperadas é dominada por bactéras psicrotróficas Gram negativas do gênero Pseudomonas, Moraxella, Acinetobacter, Shewanella, Flavobacterium, Vibrio e Aeromonadaceae. Porém, os Gram-positivos Bacillus, Micrococcus, Clostridium, Lactobacillus e Corynebacterium também podem ser encontrados em diferentes proporções. A microbiota de pescados tropicais, embora similar, normalmente apresenta uma maior concentração de microorganismos Gram positivos e bactérias entéricas20.
Os principais agentes deterioradores são as bactérias Pseudomonas fluorescens, P. fragis e S. putrefaciens. Estas bactérias utilizam substâncias nitrogendadas não proteicas produzindo TMA, ésteres, substâncias voláteis redutoras, amônia (pela desaminação de ureia e creatina) e outros compostos de odor desagradável. Entre esses outros compostos, destacam-se metil e etilmercaptanos, dimetil-sulfeto, H2S, diacetil, acetaldeído, butanal, etanal, acetona, metanol e etanol. Os compostos H2S, dimetil-sulfeto e metilmercaptana apresentam um baixo limiar de detecção e são formados a partir dos aminoácidos sulfurados metionina e cisteína. Outros aminoácidos como a glicina, leucina e serina são metabolizados e geram ésteres de ácidos acético, propiônico e butírico que lembram odores frutados, típicos do desenvolvimento de Pseudomonas.
OVOS
Os ovos possuem barreiras físicas e químicas de proteção contra o ataque microbiano. A casca e a membrana cerosa de revestimento são as primeiras barreiras físicas que precisam ser vencidas pelos micro-organismos. Em seguida, as membranas internas da casca e a membrana vitelina também conferem barreiras mecânicas adicionais. Porém, com o envelhecimento dos ovos, há uma alteração nessas barreiras tornando o processo de deterioração microbiana mais favorável.
As barreiras químicas constituem-se de conalbumina que sequestra ferro do meio, avidina que complexa com a vitamina biotina inviabilizando seu uso pelos micro-organismos, lisozima que é efetiva contra Gram-positivos, além do pH elevado da clara, em torno de 9,322.
Portanto, para que haja deterioração, os micro-organismos necessitam vencer todas essas barreiras. Primeiramente, é necessário que o microorganismo contamine a casca, o que naturalmente já ocorre no processo de produção. Em seguida, as células microbianas têm que atravessar os poros da casca e chegar às membrans internas. Então, as membranas precisam ser ultrapassadas até que a clara seja atingida pelas células. Nesse ambiente, o micro-organismo precisa ser capaz de vencer todas as condições desfavoraveis anteriormente citadas e só então chegar à gema, onde se multiplica com grande facilidade e mais rapidamente para completar o processo de deterioração. Sendo assim, é necessário que o micro-organismo apresente motilidade, o que facilita seu acesso no interior dos ovos.
A deterioração pode ser observada por iluminação com luz transmitida ou pela simples conferencia da aparência geral. Porém, alguns defeitos só são observados no momento que os ovos são quebrados e o conteúdo interno inspecionado. Rachaduras, fendas na casca ou mesmo sujidades nos ovos favorecem a deterioração durante o armazenamento.
A deterioração bacteriana dos ovos pode ocorrer pelo processo de putrefação com produção de derivados de H2S e outros de odor desagradável, além de pressão interna pela produção de gáses. Odores frutados e altamente ofensivos podem ser produzidos pelo processo de deterioração causado por Pseudomonas, Alcaligenes e Acinetobacter. Pode haver também a produção de manchas verdes na clara resultantes da multiplicação de P. fluorescens que também se apresentam fluorescentes quando iluminadas por luz UV. Manchas pretas podem ser produzidas pelo desenvolvimento de Proteus, outras Pseudomonas e Aeromonas, podendo posteriormente haver o escurecimento da gema e sua desintegração. Manchas vermelhas também podem ser observadas quando Serratia spp. contaminam o produto e manchas pontilhadas pelo crescimento miceliar também podem ocorrer, embora a deterioração fúngica seja um processo menos frequente. Nesses casos, quando o emboloramento está em seu estágio inicial, o crescimento é denominado de cabeça de alfinete, pois é pequeno e compacto. A cor varia de acordo com a cor dos esporos. Por exemplo, Penicillium spp provocam pontos amarelos, azuis ou verdes no interior da casca. Outras espécies de Penicillium, Cladosporium, Sporotrichum, Mucor, Thamnidium, Botrytis e Alternaria também podem se desenvolver em ovos estocados em ambientes com alta umidade. Nessas condições, esses bolores provocam deterioração fúngica e podridão com o micélio atingindo o interior do ovo e provocando gelificação da clara e até o surgimento de manchas vermelhas por Sporotrichum ou manchas pretas por Cladosporium.
ALIMENTOS DE ORIGEM VEGETAL
Os micro-organismos presentes em alimentos de origem vegetal são normalmente aqueles habitantes do solo e que ocorrem na superfície dos alimentos, tendo acesso ao produto durante seu crescimento no campo, nos procedimentos de irrigação, colheita, pós-colheita, armazenamento e distribuição. O uso de boas práticas agrícolas, respeitando água de boa qualidade, compostagem adequadamente preparada, saúde e higiene dos trabalhadores, instalações sanitárias apropriadas no campo, transporte e processamento podem reduzir as perdas desses alimentos.
Muitos vegetais (frutas, hortaliças) possuem condições favoráveis para o desenvolvimento dos micro-organismos. Os tecidos internos desses alimentos são normalmente ricos em nutrientes, sendo que os vegetais particularmente possuem um pH favorável, próximo a neutralidade, alta atividade de água, e potencial de oxi-redução alto, favorecendo deterioração por bactérias. A composição química média dos vegetais revela que estes são ricos em água e carboidratos, apresentando menores quantidades de proteínas e lipídeos. Os principais carboidratos em vegetais são representados pelo amido, celulose, hemicelulose e pectina. Estão presentes ainda micronutrientes como vitaminas A, D, E, tiamina, niacina, riboflavina e outras e diversos mineirais e compostos fenólicos.
As bactérias deterioradoras normalmente colonizam as superfícies das plantas, entrando nos tecidos por aberturas naturais como estômatos e principalmente devido a danos provocados durante cultivo, colheita, processamento, estocagem e distribuição. Os micro-organismos deterioradores liberam enzimas líticas tais como celulases, xilanases, pectato liases, poligalacturonase, protease, amilase e lipases, capazes de degradar componentes celulares, liberando água e outros constituintes necessários para sua multiplicação23. Algumas bactérias deterioradoras produtoras de enzimas líticas utilizam um sistema de comunicação denominado quorum sensing, que controla a expressão dessas enzimas e potencializa seus efeitos sobre os vegetais, facilitando sua deterioração11,24.
As bactérias deterioradoras mais comuns são as do gênero Erwinia, Pectobacterium, Pseudomonas e Xanthomonas. A podridão mole bacteriana, o tipo de deterioração mais comum, é provocada principalmente por Pectobacterium carotovorum (anteriormente conhecida como E. carotovora) e Pseudomonas spp. como P. marginalis, além de espécies de Bacillus e Clostridium. Nesse tipo de decomposição, as bactérias hidrolisam a pectina causando amolecimento vegetal e produzindo odor desagradável, além da aparência úmida. Dentre os diversos vegetais atacados podem ser citados a alface, alho, aspargo, batata, brócolis, cebola, cenoura, couve-flor, espinafre, melancia, pepino e repolho.
O mecanismo responsável pela podridão mole provocada por P. carotovorum é bastante complexo e envolve regulação gênica pelo sistema quorum sensing. Após produção das pectinases que danificam o vegetal provocando consistência amolecida, outros micro-organismos não produtores dessas enzimas podem se desenvolver no produto pela fermentação de carboidratos simples. A multiplicação desses micro-organismos é estimulada pela presença de compostos nitrogenados simples, vitaminas como aquelas do complexo B e os minerias. Há produção de compostos voláteis pela microbiota, o que provoca odor desagradável. Polissacarídeos complexos como a celulose são normalmente decompostos tardiamente por micro-organismos variados como fungos e outros organismos.
As bactérias do gênero Erwinia e Pectobacterium, pertencentes à família Enterobacteriaceae, possuem poucas exigências nutricionais para seu crescimento. São também capazes de se multiplicar em temperaturas de 10 oC, produzirem diversas pectinases, fermentar açúcares e álcoois dos vegetais como ramnose, celobiose, arabinose, manitol, entre outros. Também consideradas de baixa exigência nutritional, as Pseudomonas podem contribuir para decomposição dos vegetais, sendo inclusive patogênicas para alguns. As pseudomonas fluorescentes podem ainda provocar decomposição em vegetais estocados à temperatura de 4 ºC. P. glycinea provoca doença em soja, enquanto que P. apii ataca salsão. Outro fitopatógeno de destaque é a Xanthomonas campestris que provoca doenças em várias plantas incluindo as cítricas.
Vegetais e frutas minimamente processados são também altamente susceptíveis à deterioração, por isso, medidas preventivas devem ser adotadas para reduzir a contaminação e retardar a multiplicação dos micro-organismos. Esses produtos não possuem barreiras físicas próprias, pois muitas vezes a casca foi retirada e ainda apresentam alta umidade resultante da liberação de água durante a etapa de corte. Sendo assim, um controle rigoroso da temperatura de estocagem que deve ser baixa e o uso de embalagens com atmosfera modificada se tornam primordiais para extensão da vida de prateleira. Os micro-organismos mais importantes na deterioração de vegetais minimamente processados são as espécies fluorescentes de Pseudomonas. São também encontradas com frequencia bactérias do gênero Erwinia (Pectobacterium), Enterobacter, Flavobacterium, Xanthomonas, entre outras22.
Os agentes fúngicos são ainda mais importantes do que as bactérias na deterioração de alimentos de origem vegetal, especialmente as frutas. Por exemplo, o gênero Botrytis causa podridão fúngica em mais de 26 tipos de vegetais. A razão principal para a maior participação dos bolores ou fungos filamentosos e leveduras na deterioração de frutas se deve ao baixo pH das mesmas, que desfavorece a multiplicação bacteriana, inicialmente. Assim como no caso das bactérias, a invasão dos tecidos vegetais pelos fungos pode ocorrer antes ou após a colheita. Botrytis invadem a flor do morango antes da colheita e então causam podridão cinza. O Colletotrichum é responsável pela antracnose (infecção com formação de lesões necróticas) em frutas cítricas, mangas, abacates, papaias e o Gloesporium provoca podridão em maçãs e antracnose em bananas. A decomposição desses frutos ocorre normalmente após a colheita pela invasão dos fungos nos produtos danificados.
A deterioração por fungos em vegetais normalmente é visualizada por áreas amolecidas, já em frutas secas, a podridão fúngica é verificada pela presença de áreas marrons ou de cor creme pelo crescimento de micélio. Os bolores são mais comuns em frutas e vegetais ácidos, deficientes em vitaminas do complexo B, e que tenham uma superfície relativamente seca. O crescimento miceliar pode ser visível devido a esporos coloridos na superfície dos produtos ou apresentar-se em pontos isolados do mesmo. Tubérculos como a batata e inhame também podem ser deteriorados por fungos como Fusarium sambucinum, F. coeruleum e Penicillium sclerotigenum, que provocam a deterioração seca15.
Sucos naturais ou concentrados de frutas e vegetais normalmente apresentam pH baixo, variando de 2,4 para suco de limão a 4,2 para o suco de tomate. O alto teor de água e a presença de quantidade consideravel de açúcares favorecem o crescimento de leveduras ou bactérias, sendo que os fungos podem se desenvolver na superfície, quando em contato com o ar. Alterações em sucos de frutas frescas armazenadas à temperatura ambiente favorecem a fermentação alcoólica por leveduras formadoras de película ou por bolores de superfície. A oxidação do álcool a ácido acético pode ocorrer pela ação de bactérias. As leveduras selvagens produtoras de álcool e ácidos de cadeia curta são as primeiras a se multiplicarem. Em temperaturas de abuso (15-35 ºC), as leveduras produzem sabores e odores indesejáveis nesses produtos. Em temperaturas ainda mais elevadas, os lactobacilos são favorecidos e produzem ácido lático e compostos voláteis. Em baixas temperaturas (abaixo de 15 ºC) as leveduras e fungos são favorecidos.
A fermentação alcóolica por leveduras é um tipo de deterioração comum de sucos de frutas, porém outras alterações também podem ocorrer devido o crescimento de outros micro-organismos. Bactérias do ácido lático como as heterofermentativas Lactobacillus brevis, Leuconostoc mesenteroides e a homofermentativa L. delbruckii podem provocar fermentação lática em sucos de maçã e pêra. Ácidos orgânicos podem ser fermentados por L. pasteurianum provocando a transformação do ácido málico em ácido acético e succínico e do ácido cítrico em lático e acético. Sucos de maçã também podem apresentar limosidade provocada por Leuconostoc mesenteroides, Lactobacillus brevis e L. plantarum.
Sucos de vegetais por serem menos ácidos que os de fruta, com pH variando entre 5,0 e 5,8 favorem a multiplicação de bactérias láticas que os fermentarão, embora bolores e leveduras também se desenvolvem.
Cereais e farinhas, embora tenham um alto teor de nutrientes como carboidratos e proteínas, são microbiologicamente estáveis por longos períodos de tempo, devido à baixa aw, se estocados propriamente. Para o caso das farinhas, quando a aw é aumentada, pode haver o crescimento de Bacillus spp. e fungos. Bactérias aeróbias esporulantes são capazes de produzir amilase, caso haja condição de aumento de umidade da massa. Fungos do gênero Rhizopus também são comuns e podem ser reconhecidos como pontos pretos nesses produtos, resultantes da produção de esporos. Espécies de Fusarium, Alternaria, Cladosporium e Claviceps são encontradas comumente em grãos no campo, podendo reduzir sua qualidade pela produção de micotoxinas. Nos grãos armazenados, os fungos dominantes são do gênero Penicillium e Aspergillus15.
Produtos de panificação, quando adequadamente preparados e manuseados, não se deterioram facilmente pela baixa aw. O acondicionamento imediato desses produtos ainda quentes nas embalagens pode favorecer o crescimento de fungos na superfície, pelo aumento da aw nesse local. A deterioração de massas refrigeradas utilizadas para preparo de vários produtos como pizzas e pães doces pode se dar pela multiplicação de bactérias láticas. Já os bolos normalmente sofrem deterioração fúngica pela presença de altas concentrações de áçucar e da própria baixa atividade de água da farinha.
ALIMENTOS ENLATADOS
Alimentos enlatados são aqueles que foram submetidos a processamento de esterilização comercial por alta temperatura, podendo ainda combinar condições de baixo pH, aw e conservantes22. Sendo comercialmente estéreis, esses alimentos não deveriam sofrer deterioração de origem microbiana. Porém, por razões de deterioração incipiente (crescimento de uma alta densidade de micro-organismos préprocessamento) ou por falhas como vazamento na embalagem, resfriamento inadequado ou subprocessamento, a deterioração pode ocorrer. Existe também a possibilidade de deterioração por processos químicos de corrosão, com consequente estufamento da lata resultante da produção de H2. A deterioração incipiente normalmente ocorre quando o produto demora a ser processado por razões de atraso na produção. Desta forma, há oportunidade para crescimento dos micro-organismos que mesmo sendo inativados pelo processamento térmico, já terão provocado alterações siginificativas de viscosidade, redução do pH, produção de odores e sabores desagradáveis e perda de vácuo. Normalmente esse tipo de deterioração não gera uma preocupação de saúde pública, pois os microorganismos e suas toxinas normalmente são destruídos pelo processamento. A exceção se dá pelas enterotoxinas de Staphylococcus aureus e B. cereus tipo emético que resistem a altas temperaturas.
Os alimentos enlatados, termicamente tratados, podem ser divididos em três grupos: alimentos de baixa acidez (pH acima de 4,5); alimentos ácidos (pH entre 4,0 e 4,5) e alimentos muito ácidos (pH menor que 4,0). Essa classificação para enlatados tem significado histórico e está relacionada à capacidade de crescimento e produção de neurotoxina por Clostridium botulinum em alimentos com pH superior a 4,68 .
Com base na classificação por pH, os alimentos sofrem diferentes tipos de deterioração. Alimentos de baixa acidez (pH > 4,5) podem ser deteriorados por diferentes formas, como por exemplo:
- Bactérias termófilas do grupo flat sour que fermentam carboidratos causando acidez sem produção de gases. Dois importantes membros desse grupo são as bactérias Geobacillus stearothermophilus e B. coagulans. Os enlatados que apresentam esse problema não sofrerão alterações nas extremidades das latas que continuarão planas ou levemente convexas, podendo ou não haver perda de vácuo. A aparência do produto também é normal, mas devido ao abaixamento do pH, o mesmo terá sabor ácido e o aroma também fica alterado, podendo haver turvação do líquido. Como B. sterarothermophilus não se desenvolve em temperaturas inferiores a 43 ºC, seu crescimento ocorrerá somente se o produto for resfriado vagarozamente ou se for armazenado em ambientes com alta temperatura. Esporos dessas bactérias podem contaminar o produto pelos equipamentos, solo e matérias-primas como açúcar e amido.
- Bactérias termófilas anaeróbias (T.A.) não produtoras de H2S provocam estufamento (e até explosão) da lata mediante crescimento e produção de CO2 e H2. Nesse grupo de bactérias, destaca-se Clostridium thermosaccharolyticum que por ser termófila, não se multiplica em temperaturas inferiores a 35 ºC. A alteração no alimento, além da produção de gases, é caracterizada por acidez, com aroma butírico (semelhante ao de queijo ou vômito). As fontes de contaminação são o solo, equipamentos e matérias primas.
- Deterioração sulfídrica é caracterizada pela produção de H2S, não causando alterações visíveis na lata, uma vez que o gás é absorvido pelo alimento que escurece e desenvolve odor de ovo podre. A bactéria termofílica típica desse tipo de deterioração é Defulfotomaculum nigrificans que também é produtora de esporos, porém de menor resistência térmica que as bactérias do grupo flat sour ou do grupo T.A. A presença de esporos de D. nigrificans indica condições de subprocessamento.
- Outro tipo de deterioração é causado por bactérias mesófilas formadoras de esporos. Neste grupo estão incluídas bactérias anaeróbias não produtoras de toxinas conhecidas como putrefativas anaeróbias, cujo principal membro é a estirpe de Clostridium sporogenes ATCC 7955 também conhecida como PA 3679 (Putrefactive Anaerobe, P.A.)25. Estas bactérias são produtoras de gás e provocam estufamento da lata que tende a estourar. O pH do produto tende a se elevar e o odor típico de podre é detectado. Inclui-se nesse grupo o C. botulinum devido à sua importância para a segurança dos alimentos. Também estão inclusos nesse grupo C. histolyticum, C. bifermentans, entre outros;
- A deterioração por espécies mesófilicas de Bacillus também pode ocorrer, apesar da menor resistência desses esporos, se comparada a dos termófilos. Muitas espécies de Bacillus são aeróbias e não crescem em embalagens cujo vácuo foi bem empregado. Porém, em condições onde falhas ocorrem durante a aplicação do vácuo aliado ao alimento de baixa acidez, B. subtilis e B. mesentericus podem se desenvolver.
Alimentos ácidos (pH entre 4,0 e 4,5) são deteriorados por bactérias termófilas do tipo flat sour, exemplificadas especialmente pelo B. coagulans que deteriora produtos à base de tomate. B. thermoacidurans e B. polymyxa também podem provocar deterioração. Sucos de tomate enlatados deteriorados por B. coagulans podem apresentar alterações no pH e aroma do produto, com pouca alteração na lata em si, que se apresenta normal. Os micro-organismos anaeróbios butíricos também podem provocar deterioração em produtos à base de tomate, abacaxi e pêra, por exemplo. Nestes casos, ocorre produção de gases o que naturalmente resulta em dilatamento da lata e o produto apresenta-se ácido com odor butírico (de queijo). O exemplo de bactéria desse grupo é o C. pasteurianum que é mesofílica. Bactérias não formadoras de esporos, como as bactérias láticas também podem deteriorar produtos ácidos enlatados como tomates, pêras e figos, causando estufamento, explosão da lata e odor ácido.
Os produtos de alta acidez (pH infeior a 4,0) são exemplificados pelo chucrute, picles e outros fermentados. Podem ser deteriorados por bolores e leveduras e bactérias láticas como Lactobacillus e Leuconostoc. Fungos resistentes ao calor são raros, porém alguns isolados de frutas enlatadas, sucos de frutas e sucos concentrados já foram encontrados e pertencem aos gêneros Byssochlamys, Neosartorya, Talaromyces e Eupenicillium. Acreditase que esses fungos produzam esporos que sobrevivem ao processo térmico dado a alimentos de alta acidez, crescendo nesses alimentos, mesmo em condições de baixa tensão de oxigênio. As frutas que entram em contato direto com o solo são as de maior risco de contaminação por esses fungos. As principais formas para evitar tal contaminação envolvem seleção das frutas, uso de boas práticas de processamento pelo estabelecimento, lavagem com água clorada, prevenção de danos durante colheita e processamento, remoção de frutas danificadas e remoção da casca, branqueamento e até o uso de conservantes (benzoatos, sorbatos ou dióxido de enxofre) 22.
ALIMENTOS DIVERSOS
Produtos com alto teor de açúcar como chocolates, balas, açúcares líquidos, xaropes, doces e méis raramente sofrem decomposição quando preparados e armazenados cuidadosamente, uma vez que a aw é fator limitante. A deterioração, quando ocorre, é devida ao crescimento de leveduras osmofílicas e fungos filamentosos xerofílicos. A estabilidade desses produtos pode ainda ser influenciada pelo pH, processamento, temperatura de estocagem e conservantes. No caso do mel, diversos outros antimicrobianos estão presentes como peróxido de hidrogênio, lisozima, compostos fenólicos e ácidos orgânicos. Embora a deterioração microbiana não seja tão preocupante, micro-organismos patogênicos como Salmonella spp. sobrevivem nesses alimentos e têm sido implicados em diversos surtos.
Os condimentos normalmente não sofrem deterioração microbiana quando a desidratação é bem feita e os mesmos são armazenados adequadamente. O principal problema de contaminação dos condimentos se deve à presença de esporos de fungos que podem contaminar os alimentos temperados com esses produtos. Portanto, as boas práticas de produção devem ser observadas além de tratamentos por irradiação, vapor e óxido de propileno destinados a reduzir a contaminação microbiana desses produtos.
Nozes e produtos semelhantes também apresentam baixo conteúdo de água disponível para crescimento, especialmente devido ao alto teor de gordura e baixa umidade. Por isso, o crescimento microbiano é limitado aos bolores que podem se desenvolver em ambientes com umidade relativa elevada, o que consequentemente altera a aw, e ainda produzir micotoxinas, como as aflatoxinas. A decomposição das nozes por fungos pode alterar a aparência, textura, sabor e qualidade global, reduzindo a vida útil desses produtos22.
A maionese é uma emulsão semi-sólida de óleo vegetal, gema de ovo ou ovo completo, vinage e/ou suco de limão, e outros ingredientes opcionais como sal e glicose. O pH da maionese varia de 3,6 a 4,0, sendo o ácido acético o principal acidificante e a aw é em torno de 0,93. Embora esse produto contenha grande quantidade de nutrientes, fatores limitantes como o baixo pH, presença de ácidos orgânicos fracos e baixa aw limitam a deterioração por leveduras, algumas bactérias e fungos (superficialmente). Entre as leveduras destacam-se a Zygosaccharomyces bailii e espécies do gênero Saccharomyces que deterioram esse produto e outros semelhantes como molhos de salada. Destacam-se também as bactérias Lactobacillus fructivorans, L. brevis subespécie lindneri e Bacillus vulgatus22. Em geral, a deterioração de maionese se revela pela separação de fase, presença de bolhas de gás e odores butíricos (semelhante a vômito). Produtos comerciais, devido ao controle na produção, especialmente do pH, previnem a multiplicação de patógenos e não são normalmente implicados em surtos de origem alimentar. Porém, maioneses caseiras têm sido reportadas continuamente em surtos devido a ovos contaminados, falta de controle do pH e temperatura inadequada de estocagem7.
A deterioração de cervejas é normalmente conhecida como infecção de cerveja e é causada por leveduras e bactérias. As principais bactérias Gram-positivas deterioradoras de cerveja são as bactéris do ácido lático Lactobacillus e Pediococcus. A maior parte dos problemas de contaminação de cerveja ocorre pelo crescimento de bactérias láticas. Algumas bactérias Gram-negativas importantes incluem Pectinatus, Megasphaera e Zymomonas, equanto que leveduras selvagens são divididas em Saccharomyces e não Saccharomyces. Os tipos de deterioração desse produto podem ser observados pelo desenvolvimento de viscosidade, turbidez, acidez e desevolvimento de odores desagradaveis. A viscosidade normalmente é provocada por Acetobacter, Lactobacillus, Pediococcus cerevisiae e Gluconobacter oxidans. Odores semelhantes a mel podem ser produzidos pela contaminação com P. cerevisiae. Acidez normalmente é devida a Acetobacter spp. que oxidam o etanol a ácido acético. O problema de turbidez e maus odores pode ser devido ao crescimento de Zymomonas anaerobia e várias leveduras selvagens do gênero Saccharomyces7, 26.
Os vinhos podem passar pelo processo de deterioração pelo crescimento de certas bactérias e leveduras. A levedura Candida valida é a principal deterioradora de vinhos, crescendo e formando um filme sobre a superfície. Entre as bactérias, as do gênero Acetobacter podem oxidar o etanol a ácido acético.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A deterioração dos alimentos é um processo complexo, resultado de uma sucessão de reações enzimáticas microbianas ou endógenas, e ainda associada a fatores físicos e químicos. A compreensão dos processos de deterioração microbiana dos alimentos, em especial as alterações químicas e sensoriais provocadas pelos micro-organismos, é essencial para que alimentos sejam produzidos com sua qualidade assegurada para a população, reduzindo, assim, as perdas que continuam sendo substanciais em todo o mundo.
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