A fabricação de queijos com leite cru é uma prática muito antiga de transformação, conservação do leite e agregação de valor. A transformação do leite em queijo passa pelas etapas de coagulação do leite, separação do soro e fermentação (entre outras, dependendo do tipo de queijo). A fermentação é uma técnica muito eficaz na conservação dos alimentos, onde as bactérias láticas desempenham um papel fundamental na inibição das bactérias patogênicas e deteriorantes. As bactérias láticas produzem metabólitos durante a fermentação, tais como o ácido lático, peróxido de hidrogênio, diacetil e bacteriocinas que agem como agentes bacteriostáticos, além de promoverem a exclusão competitiva de microrganismos indesejáveis.
As bactérias láticas fazem parte da microbiota natural do leite e desempenham um papel determinante no processo de fabricação de queijos fabricados a partir de leite cru, desenvolvendo as características sensoriais do produto, particularmente a textura, o aroma e o sabor. Esta microbiota é variável em função das condições de produção do leite, tais como a região, clima, alimentação do rebanho, condições de maturação, etc. São estes fatores que proporcionam ao produto fabricado em uma determinada região suas características particulares. Em função desta variada microbiota, queijos fabricados com leite cru são reconhecidos por terem uma qualidade sensorial superior aos queijos feitos com leite pasteurizado, uma vez parte desta microbiota natural acaba sendo eliminada.
A pasteurização é um tratamento térmico que visa destruir as bactérias patogênicas, mas consequentemente parte das bactérias láticas são eliminadas no processo. Por esta razão, é necessária a adição de fermentos lácteos (culturas starters) para favorecer a fermentação do leite a partir de bactérias láticas selecionadas. Em condições inadequadas de manejo e higiene a proporção de bactérias patogênicas pode atingir quantidades acima da capacidade de bioconservação realizada pelas bactérias láticas. As boas práticas de fabricação devem ser seguidas com rigor também em queijos feitos com leite pasteurizado, pois uma contaminação após o processo de pasteurização compromete igualmente a inocuidade do produto. Nestes casos, o risco destes produtos causarem doenças à saúde do consumidor é alta, principalmente para grávidas, crianças, idosos e imunodeprimidos.
A maturação é outra etapa importante no processo de fabricação de queijos, quando as bactérias láticas acabam criando condições desfavoráveis ao desenvolvimento de bactérias patogênicas e deteriorantes, como por exemplo a diminuição do pH e o aumento do potencial de oxido-redução. É também durante a maturação que as bactérias láticas liberam enzimas que hidrolisam proteínas e gorduras, sendo os produtos deste processo hidrolítico componentes do aroma, responsáveis pelas características sensoriais do queijo.
Algumas das zoonoses (doenças transmitidas do animal para o homem) que podem ser veiculadas por um produto lácteo feito com leite cru são a brucelose (Brucella abortus), a tuberculose (Mycobacterium bovis) e a febre Q (Coxiella burneti). Além disso, os queijos podem causar intoxicações e/ou infecções alimentares ocasionadas por bactérias patogênicas, tais como Escherichia coli, Staphylococcus aureus, Salmonella spp., Bacillus cereus, Yersinia enterocolitica, Listeria monocytogenes, Campylocater jejuni entre outras. A L. monocytogenes representa um risco de alta severidade para mulheres grávidas, pois pode causar aborto e septicemia.
Desta forma, a sanidade do rebanho e as boas práticas de manejo e produção representam um papel ainda mais crítico para queijos feitos com leite cru, principalmente naqueles que não passam pelo processo de maturação. Neste ponto, a qualidade de alguns queijos feitos com leite cru no Brasil deixa a desejar, pois as médias de Contagem de Células Somáticas (CCS) e Contagem Bacteriana Total (CBT), apesar de já terem melhorado significativamente após a implantação do Programa Nacional de Melhoria da Qualidade do Leite, ainda são consideradas elevadas quando comparadas a outros países com uma pecuária do leite mais desenvolvida. Além do mais, não é raro encontrarmos queijos com altos índices de contaminação por coliformes, S. aureus e presença de Salmonela. É preciso ter consciência que o Brasil ainda não é classificado como território livre de brucelose e tuberculose, enfermidades ainda epizoóticas nos rebanhos de bovinos de corte e de leite.
Com base nestes riscos, torna-se imprescindível o cumprimento das normas estabelecidas pela legislação para a fabricação de queijos, sejam eles feitos a partir leite cru ou pasteurizado, em ambiente industrial ou artesanal. A partir do momento em que o produto passa a ser exposto para comercialização, o mesmo deve atender integralmente os requisitos higiênico-sanitários legais, a fim de evitar a transmissão de agentes causadores de toxi-infecções de origem alimentar.
Ainda assim, é perfeitamente viável a fabricação de queijos com leite cru sem que haja riscos à saúde do consumidor. Exemplo disso são os queijos franceses fabricados a partir de leite cru, tais como o Camembert da Normandia, Reblochon, Roquefort, entre outros mundialmente reconhecidos e apreciados. Estes queijos são fabricados seguindo-se técnicas tradicionais, mantendo assim suas características sensoriais particulares. Os produtores artesanais se adaptaram à evolução tecnológica e passaram a incluir as técnicas de boas práticas de fabricação ao processo tradicional. A atenção é voltada principalmente para a sanidade do rebanho, considerada livre de brucelose e tuberculose, baixos níveis de mastite e contagens bacterianas sensivelmente inferiores àquelas registradas no Brasil. Os queijos são fabricados logo após a ordenha, para evitar a proliferação de bactérias no leite. Outra grande diferença é que os queijos passam pela etapa de maturação, que varia em função do tipo de queijo. Além disso, os produtores artesanais são constantemente fiscalizados e têm como dever o cumprimento rigoroso das regras impostas para a fabricação de queijos feitos com leite cru.
O embate entre a qualidade microbiológica versus a fabricação de produtos tradicionais ainda é bastante polêmico, pois envolve aspectos culturais, sociais e econômicos em contrapartida à aspectos legais, técnicos e de segurança alimentar. Entre estes dois lados está o consumidor, muitas vezes leigo e inconsciente do risco a que está exposto, o que reforça a responsabilidade dos higienistas de alimentos em oferecer produtos seguros, independentemente da forma de produção.
Fonte: Publicado na página do Milkpoint. Autora do artigo: Maike Tais Maziero Montanhini. Tecnóloga em Alimentos, especialista em Higiene, Vigilância e Processamento de Produtos de Origem Animal, mestre em Ciência de Alimentos, doutora em Tecnologia de Alimentos e com pós-doutorado na Universidade Federal do Paraná.