Intolerância e má-absorção de lactose

 

O leite faz parte da dieta humana há milhares de anos. Por séculos, senão milênios, o leite e seus derivados têm sido ícones de saúde e nutrição, principalmente pelo seu papel na nutrição como um todo, no crescimento e fortalecimento de ossos e dentes, e a possibilidade de prevenir osteoporose.

A lactose é o único açúcar que ocorre exclusivamente no leite de mamíferos. Ela é um dissacarídeo, o que significa que é constituído por duas outras unidades de açúcares, a glicose e a galactose. Para a sua digestão e absorção pelo organismo, faz-se necessária a sua degradação a esses dois açúcares constituintes para que os mesmos sejam absorvidos pelo intestino. Essa conversão ocorre pela atuação de uma enzima popularmente denominada lactase, e são em suas alterações e ausência que começam nossos problemas.
Geneticamente, estamos programados para uma diminuição gradual da presença dessa enzima no nosso organismo após o desmame, o que leva a uma diminuição em torno de 90% de sua atividade até os 5 anos de idade. Entretanto, adaptações
evolutivas culminaram com a ocorrência de uma mutação que leva à persistência da lactase mesmo nos adultos. Acredita-se que essa mutação genética favorável à tolerância à lactose teria ocorrido pela introdução do leite e derivados na alimentação
humana, em locais onde o consumo desse foi relevante. Esta mutação teria, então, resistido seletivamente, com o objetivo de promover a saúde, a sobrevivência e a capacidade reprodutiva dos portadores do gene. Vale ressaltar ainda que há indícios
de uma relação entre a maior tolerância à lactose e a exposição limitada à luz solar. A baixa exposição solar leva a uma menor quantidade de vitamina D, que é gerada por esse processo, o que prejudica a absorção de cálcio. Dessa forma, o favorecimento da absorção de cálcio pela lactose torna-se uma alternativa evolutiva interessante nesses povos. Além do cálcio, a lactose também favorece a absorção de magnésio e fósforo, entre outros elementos traços. Essa questão histórica faz com que povos como os orientais e africanos apresentem maior incidência de intolerância à lactose do que povos do norte da Europa, onde a domesticação do gado tem uma longa história.

Quando ocorre a falta da enzima lactase, a lactose não é convertida em glicose e galactose e chega em sua forma nativa ao intestino, onde é fermentada pelos microrganismos presentes. Essa fermentação gera gases que criam uma sensação de
desconforto por distensão abdominal e flatulência. Também são produzidos ácidos que, junto com a lactose não digerida, favorecem a passagem de água para o intestino, resultando em diarréia. A quantidade de lactose que irá causar sintomas
varia de indivíduo para indivíduo, dependendo da dose de lactose ingerida, o grau de deficiência de lactose e a forma do alimento consumido.

A intolerância à lactose é uma inabilidade para digerir a lactose e sua forma mais grave é a congênita, onde o recém-nascido apresenta diarréia líquida ao ser amamentado ou receber fórmulas contendo lactose. Isso acontece pela ausência da lactase, ou por essa estar truncada. Essa deficiência é rara e a deficiência do tipo adulto é o modelo fisiológico normal. A má-absorção, também denominada hipolactasia, ocorre pela diminuição normal dos teores de lactose no intestino do adulto ou como conseqüência de uma condição de saúde, como desnutrição, úlcera duodenal, giardíase e uso prolongado de antibióticos, entre outros.
Pelo fato do leite de vaca ser importante fonte de nutrientes, a sua eliminação da dieta sem adequada substituição pode prejudicar o crescimento normal e a qualidade nutricional da dieta. Grupos com dieta isenta de leite de vaca e derivados apresentam significativamente menor ingestão de energia, proteínas e lipídios quando comparado com grupos que consomem esses produtos. A alimentação de crianças com dieta isenta de leite de vaca e seus derivados também apresenta déficits de nutrientes, especialmente de energia e cálcio, em relação às recomendações internacionais e também em relação a grupos sem restrições.

A exclusão total e definitiva da lactose da dieta deve ser evitada, pois pode acarretar prejuízo nutricional de cálcio, fósforo e vitaminas, podendo estar associada com diminuição da densidade mineral óssea e fraturas. Além disso, a maioria das pessoas
intolerantes à lactose pode ingerir 12 g/dia de lactose (equivalente a um copo de leite) sem apresentar sintomas adversos.
Medidas que podem ser adotadas para a manutenção dos lácteos na dieta incluem a terapia de reposição enzimática com lactase exógena, onde a enzima é ingerida após a refeição; o consumo de leites comerciais com baixo teor de lactose; produtos fermentados, que tenham redução de lactose ou com microrganismos que propiciem a absorção da lactose no intestino; consumo de queijos maturados; leites não fermentados mas que carreiem culturas vivas; ingestão com outros alimentos; fracionamento das porções ao longo do dia. Há também evidências de que o consumo crônico de lactose provoca adaptação da microflora do cólon, aumentando a tolerância pela presença de uma flora mais eficiente na fermentação da lactose, e que apenas cerca de 20% dos indivíduos inábeis em digerir a lactose experimentam em algum grau os sintomas da intolerância.

O aparecimento de sintomas de intolerância à lactose depende de diversos fatores, tais como a dose de lactose consumida, o grau de adaptação colônica (motilidade, trânsito, pH, microbiota), a taxa de esvaziamento gástrico e a característica física do
alimento que carrega a lactose (sólido ou líquido), de forma que, embora uma dieta livre de lactose possa ser útil no diagnóstico, a maioria dos indivíduos intolerantes não precisa seguir rotineiramente essa dieta para evitar os sintomas desagradáveis decorrentes da ingestão desse dissacarídeo.

No momento, o grande alvo de desenvolvimento de novos produtos na indústria de laticínios são os produtos probióticos, em função de suas alegações de melhoria na condição clínica da pessoas portadoras de alguma intolerância à lactose. Alguns
microrganismos utilizados no produção desses alimentos apresentam atividade de lactase, ou seja, uma vez presentes no intestino, atuam na digestão da lactose e, com isso, promovem melhora clínica dos sinais da intolerância, situação comum em adultos e crianças.
Tudo isso posto, não há necessidade de exclusão total do leite e seus derivados da dieta sem uma avaliação clínica detalhada.

Autora: Isis Rodrigues Toledo Renhe. Publicado no Portal NUVLAC (http://www.nuvlac.com.br)

 

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